Dicionário do Patrimônio Cultural

Arquitetos Modernistas

Verbete

Flavia Brito do Nascimento

O patrimônio nacional e suas atribuições de valor estão imiscuídos na trama da arquitetura moderna, cujas práticas foram ditadas por parâmetros e visões de mundo do grupo que, com muita engenhosidade e talento profissional e político, logrou realizar seu projeto de arquitetura e urbanismo junto ao Estado. No grupo reunido em torno de Rodrigo Melo Franco de Andrade, diretor do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) de 1937 a 1967, consolidaram-se as práticas e os discursos seletivos do patrimônio nacional, com a colaboração estreita de pensadores e articuladores intelectuais do modernismo, como Mário de Andrade e Lucio Costa. Com Gustavo Capanema à frente do Ministério da Educação e Saúde Pública (Mesp), os modernistas encontraram lugar no Estado getulista, e o SPHAN, com certa autonomia política no período, funcionou como espaço privilegiado dos modernos. 

Tradição e modernidade, enlaçadas na prática institucional do SPHAN desde sua criação, formaram uma unidade na defesa do patrimônio nacional e conformaram sua identidade. Os laços com os modernos são frequentemente citados ao longo da história institucional de mais de 70 anos do Patrimônio e nas narrativas construídas pelo próprio órgão. O discurso de pertencimento ao moderno é reeditado mesmo em momentos muito posteriores à criação da instituição, como nos anos 1980, quando importantes mudanças no campo do patrimônio ocorreram a partir da ampliação da noção de patrimônio histórico e artístico para a de patrimônio cultural. Potencialmente, todas as expressões da cultura poderiam ser consideradas patrimônio, o que levou à ampliação tipológica, geográfica e social dos tombamentos e à intensificação da atuação dos órgãos de preservação. O anteprojeto de Mário de Andrade para a criação do Serviço do Patrimônio, preterido em benefício do Decreto-lei nº 25, foi recuperado para legitimar historicamente as novas intenções políticas do grupo ligado a Aloisio Magalhães, dirigente da instituição entre 1979 e 1982 (RUBINO, 1991, p.64-65).

Em 1937, os intelectuais modernistas, baseados em concepções de arte, história, tradição e nação, criaram o conceito de patrimônio que se tornou hegemônico no Brasil. Os arquitetos foram a maioria dos profissionais envolvidos com a preservação e nos quadros iniciais do SPHAN constavam Lucio Costa, Alcides Rocha Miranda, Renato Soeiro, Paulo Thedim Barreto, Carlos Leão, Ayrton Carvalho, Edgard Jacintho, José de Souza Reis, Lucas Meyerhofer, Sílvio de Vasconcelos e Luiz Saia. Tal constituição profissional marcou as práticas seletivas da instituição: eram os objetos do mundo edificado, notadamente do período colonial, elegidos pelos arquitetos modernistas, como os que representariam o passado brasileiro e o articulariam ao presente, ao Estado Novo. 

À época da criação do SPHAN, a sensibilidade dos modernistas para com a produção do período colonial estava aguçada. Os modernistas Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, na companhia do poeta francês Blaise Cendras, haviam se encantado com as Minas Gerais em 1924. A famosa viagem às cidades históricas mineiras, guiada pelo olhar de Mário, proporcionou maior atenção às obras do século XVIII, frequentemente desprezadas pelas elites nacionais influenciadas pelo gosto e modas europeias. Esse projeto de preservação da arquitetura, conduzido pelo SPHAN, forjou saberes e levou à especialização do conhecimento nos campos da atribuição de valor e da intervenção em sítios históricos. 

Os intelectuais modernistas do SPHAN atribuíram, às produções materiais da época colonial, valores de identidade nacional. Seus atributos estéticos e estilísticos eram valorados por meio do tombamento de exemplares arquitetônicos excepcionais ou de conjuntos urbanos monumentalizados. 

No campo da produção da arquitetura moderna, a arquitetura do período colonial passou a ser muita valorada como repositório de bons exemplos de arquitetura e como lastro histórico do tempo presente. O conhecimento da arquitetura barroca seria então amalgamado no projeto de arquitetura moderna levado a termo pelos seus protagonistas no Brasil. A relação entre tradição e modernidade permeou as realizações e os discursos da arquitetura moderna brasileira e são fundantes de uma identidade afirmada como genuína. 

Lucio Costa assumiu papel destacado na qualidade de especialista em arquitetura colonial e protagonista do movimento moderno. De 1937 até 1972 foi diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos, e sua participação no IPHAN excedeu os limites dos estudos e instruções de processos de tombamento, envolvendo-se ativamente nas atividades finalísticas da instituição (PESSÔA, 1999). Com a entrada no “Patrimônio”, Lucio Costa teve a oportunidade de aprofundar seus estudos da arquitetura brasileira, escrever história em paralelo à conquista de espaço para o movimento moderno e assumir a posição de principal mentor das concepções políticas de patrimônio daqueles anos (CHUVA, 2009, p. 39).

Costa foi figura central na constituição do que Carlos Martins (1999) chamou de “trama narrativa” da arquitetura brasileira. Os textos de Lucio Costa “Razões da nova arquitetura”, de 1935, e “Depoimento de um arquiteto carioca”, de 1948, urdiram a versão canônica da história da arquitetura brasileira, corroborada e consolidada pelos muito divulgados livros de Philip Goodwin (Brazil Builds, 1942), Henrique Mindlin (Arquitetura moderna no Brasil, 1956) e Yves Bruand (Arquitetura contemporânea no Brasil, 1979) (TINEM, 2006). Nessa trama narrativa, a arquitetura colonial tem papel central, assim como a hegemonia da linguagem arquitetônica moderna, principalmente ligada ao arquiteto francês Le Corbusier. A historiografia da arquitetura brasileira inaugurada por Lucio Costa, sobretudo a partir do texto “Depoimento de um arquiteto carioca”, estruturará a ideia de sua indissociabilidade entre modernidade e tradição na produção da arquitetura brasileira no período de 1930 a 1950. 

A arquitetura moderna e sua afirmação no campo cultural e arquitetônico havia adquirido em 1930 status de batalha durante a passagem de Costa pela direção da Escola Nacional de Belas Artes (Enba), à qual se seguiu a contenda com José Marianno Filho. A partir daí, passos substanciais foram dados em favor da consolidação do grupo moderno, com protagonismo de Lucio Costa nos projetos realizados e também na escrita da história da arquitetura brasileira (LEONÍDIO, 2007). A tomada de lugar no campo do patrimônio histórico e artístico nacional foi fronteira conquistada pelos modernistas, conquista esta inseparável da valoração da arquitetura que produziam.

Em 1937, ao assumir o trabalho no SPHAN, Costa havia recentemente vencido embates para o estabelecimento da arquitetura moderna. Entre 1935 e 1936, os episódios relativos ao concurso de projetos para a sede do Ministério da Educação e Saúde Pública envolveram o cancelamento do resultado do concurso público e a convocação, por Lucio Costa, de um grupo de arquitetos modernos para realizar outro projeto com a consultoria do francês Le Corbusier (LISSOVSKY; SÁ, 1996). Com o projeto de feições modernas para o Mesp aprovado pela equipe do Ministério, o espaço da arquitetura moderna ligada ao pensamento e à prática de Le Corbusier se tornava cada vez mais consistente. O Lucio Costa funcionário do SPHAN e o Lucio Costa aguerrido arquiteto moderno entraram em cena ao mesmo tempo; suas ideias foram veiculadas pela arquitetura realizada, pelos estudos e tombamentos e pela escrita da história da arquitetura. Lucio Costa, entre muitos arquitetos – como Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Gregori Warchavchik, Attílio Correia Lima, Vital Brasil, irmãos Roberto– destacou-se na produção da arquitetura moderna brasileira daqueles anos, tornando-se liderança importante em virtude de seus posicionamentos em defesa da arquitetura moderna.

Tais posicionamentos ajudaram a construir a história da arquitetura nacional, cujo local de fala e reprodução era o das relações entre tradição e modernidade, frequentemente representadas pelos bens culturais tombados, sejam coloniais, sejam modernos. As práticas seletivas do SPHAN de Rodrigo Melo Franco de Andrade tinham como principal argumento os aspectos excepcionais e artísticos das obras, comprovados pela história da arte e da arquitetura escrita quase concomitantemente à seleção e à sacralização de bens pelo tombamento. A proteção de bens culturais pelo SPHAN guardava, então, íntima relação com a história da arte e da arquitetura, ou seja, era fruto das narrativas historiográficas em construção a partir do ponto de vista modernista.

Fontes consultadas
BRUAND, Yves [1979]. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1991. 
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. 
COSTA, Lucio [1948]. Depoimento de um arquiteto carioca In: XAVIER, Alberto (Org.). Lucio Costa: sobre arquitetura. Porto Alegre: Centro dos Estudantes de Arquitetura, Faculdade de Arquitetura, Universidade do Rio Grande do Sul, 1962. p. 169-201.
________. Razões da nova arquitetura. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal. Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 3-9, jan. 1936.
FONSECA, Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997.
GOODWIN, Philip [1942]. Brazil Builds. Architecture New and Old 1652-1942. New York: The Museum of Modern Art, 1943.
GORELIK, Adrian. Das vanguardas a Brasília: cultura urbana e arquitetura na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
LEONÍDIO, Otávio. Carradas de razões: Lucio Costa e a arquitetura moderna brasileira (1924-1951). Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2007.
LISSOVSKY, Maurício; SÁ, Paulo Sérgio Moraes de (Orgs.). Colunas da educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde (1935-1945). Rio de Janeiro: MINC/IPHAN, 1996.
MARTINS, Carlos. Hay algo de irracional... Block, Buenos Aires, n. 4, p. 8-22, dez. 1999.
MINDLIN, Henrique [1956]. Arquitetura moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
NASCIMENTO, Flávia Brito do. Blocos de memórias: habitação social, arquitetura moderna e patrimônio cultural. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – FAU, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. 
PESSÔA, José (Org.). Lucio Costa: documentos de trabalho. Rio de Janeiro: IPHAN, 1999.
RUBINO, Silvana. O mapa do Brasil passado. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 24, p. 97-105, 1996.
TINEM, Nelci. O alvo do olhar estrangeiro: o Brasil na historiografia da arquitetura moderna. João Pessoa: Editora Universitária, 2006.

Como citar: NASCIMENTO, Flavia Brito do. Arquitetos Modernistas. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6

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Ficha Técnica

Flavia Brito do Nascimento Arquiteta e historiadora; doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Foi arquiteta do IPHAN em São Paulo. Atualmente é docente do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto, da FAU/USP.