Os pescadores e a cosmologia Enawene

Acervo IphanDurante o  Ritual Yaokwa, os pescadores Enawene Nawe removem os adornos que os identificam como humanos, se dividem em grupos e partem para acampar às margens de rios de médio porte: rio Joaquim Rios (Tinuliwina e Muxikiawina), tributário do rio Camararé; rio Arimena e rio Preto (Olowina e Adowina), tributários do rio Juruena e rio Nambikwara (Huyakawina), tributário do rio Doze de Outubro. O momento exato da partida é indicado, principalmente, pela floração da gramínea ohã (Gymnopogo foliosu) e pela fase lunar Tonaytiri, sinais que indicam o movimento migratório dos peixes das áreas alagáveis para as calhas dos rios, após a piracema.

Chegando aos acampamentos, os pescadores dão início à construção da barragem de pesca, que deve seguir um procedimento rigoroso para evitar seu rompimento pela força da água. A pesca de barragem se baseia no mito de Dokoi, morto pelos peixes, cujo pai, Dataware, para vingar a morte do filho, arremessava paus nas águas dos rios, e esses se transformavam em barragens que passaram a funcionar como armadilha na captura dos peixes. A construção das barragens pelos Enawene Nawe os torna cúmplices dessa vingança. Nas barragens, a pesca dura dois meses e é orientada por homens mais velhos, conhecedores dos sinais emitidos pela natureza, que indicam cada etapa do rito.

Em cada barragem, um ancião emissor de sopros e palavras poderosas, tendo o sal vegetal em mãos, volta-se para um dos pescadores, que representa os seres Yakairiti, oferece o sal como troca pelos peixes que os Yaokwa pretendem pescar com as armadilhas, e espera que esses seres conduzam os peixes até elas. O sal, então, é consumido, indicando que foi selada a parceria entre humanos e seres sobrenaturais. Com o estoque de peixes obtido, os pescadores se preparam para o retorno.

No pátio da aldeia, eles representam os agressivos Yakairiti, enquanto os anfitriões representam os próprios Enawene Nawe, que os recepcionam aos pulos e gritos. Quando tudo parece se acalmar, as trocas iniciam-se: os pescadores entregam os peixes e recebem o sal vegetal e as bebidas de mandioca e de milho. Isto significa que a ira dos Yakairiti foi aplacada e que eles foram domesticados. Os anfitriões, em seguida, repõem nos pescadores os adornos retirados, humanizando-os. Os peixes e os alimentos vegetais então produzidos e acumulados irão abastecer os banquetes festivos que ocorrerão diariamente ao longo de mais alguns meses, em noites iluminadas por fogueiras e acompanhadas por cantos com flautas e danças.

Orientado pela cosmologia Enawene e regulado pelos ciclos da natureza, o Ritual Yaokwa integra complexas relações de ordem simbólica e articula domínios distintos, porém indissociáveis e interdependentes da sociedade, da cultura e da natureza. Para que ele seja realizado, é necessário que se satisfaça um conjunto de elementos que estrutura, material e imaterialmente, performances específicas. Estes elementos envolvem determinadas condições ambientais que garantem a obtenção dos produtos animais e vegetais necessários à execução do rito. Engloba também um repertório de tradições orais, danças, cantos, instrumentos e outros saberes tradicionais. 

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