O Modo de Fazer Renda Irlandesa, tendo como referência este ofício em Divina Pastora, no Estado de Sergipe, este ofício é relacionado ao universo feminino e vinculado, originalmente, à aristocracia. A partir, especialmente, da metade do século 20, a confecção da renda surgia como uma alternativa de trabalho, e hoje essa tarefa ocupa mais de uma centena de artesãs, além de ser uma referência cultural. O Modo de Fazer Renda Irlandesa, tendo como referência este ofício em Divina Pastora/SE, foi inscrito no Livro de Registro dos Saberes, em 2009.
Constitui-se de saberes tradicionais que foram re-significados pelas rendeiras do interior sergipano a partir de fazeres seculares, que remontam à Europa do século XVII, e são associados à própria condição feminina na sociedade brasileira, desde o período colonial até a atualidade. Trata-se de uma renda de agulha que tem como suporte o lacê, cordão brilhoso que, preso a um debuxo ou risco de desenho sinuoso, deixa espaços vazios a serem preenchidos pelos pontos. Estes pontos são bordados compondo a trama da renda com motivos tradicionais e ícones da cultura brasileira, criados e recriados pelas rendeiras.
O “saber-fazer” é a qualidade mais característica da produção da Renda Irlandesa, a qual é compartilhada pelas rendeiras sob a liderança de uma mestra reconhecida pelo grupo. As mestras traçam o risco definidor da peça, que é apropriado coletivamente. Fazer Renda Irlandesa é, portanto, uma atividade realizada em conjunto, o que permite conversar, trocar ideias sobre projetos, técnicas e pontos. Neste universo de sociabilidades, são reafirmados sentimentos de pertença e de identidade cultural, possibilitando a transmissão da técnica e o compartilhamento de saberes, valores e sentidos específicos.
A cidade de Divina Pastora se tornou o principal polo da renda irlandesa em razão de condições históricas de produção vinculadas à tradição dos engenhos canavieiros, à abolição da escravatura e às mudanças econômicas que culminaram na apropriação popular do ofício de rendeira, restrito originalmente à aristocracia. A renda irlandesa é um tipo de renda de agulha, dentre as muitas existentes no Brasil. Combina uma multiplicidade de pontos executados com fios de linha tendo como suporte o lacê, produto industrializado que se apresenta sob várias formas, sendo o fitilho e o cordão os mais conhecidos na atualidade.
Em Sergipe, a opção das mulheres no município de Divina Pastora por trabalharem com o lacê do tipo cordão sedoso achatado, mesmo empregando uma técnica que é muito difundida no Nordeste, resultou na confecção de uma renda singular, de grande beleza, ressaltada pelo relevo e brilho do lacê. Isto confere ao produto do seu trabalho um diferencial em relação às rendas produzidas em vários estados da Região. Desse modo, a renda irlandesa de Divina Pastora, devido ao tipo de matéria prima empregada, apresenta características próprias, gerando um produto em que textura, brilho, relevo, sinuosidades dos desenhos se combinam de modo especial, resultando numa renda original e sofisticada.
A presença da renda irlandesa na cidade de Divina Pastora, com esse diferencial dado pela matéria-prima e pelo trabalho meticuloso das rendeiras, hoje se constitui numa importante atividade geradora de renda para mais de uma centena de mulheres, mas, sobretudo, numa referência cultural e elemento constitutivo de diferenciação e identidade. Através de literatura específica, é possível estabelecer vinculação direta desse tipo de renda com fazeres seculares que, na Europa, têm uma longa história que remonta ao século XVII. O transplante da técnica para o Brasil e sua inserção em diferentes localidades e contextos socioculturais através do tempo, cortando as classes, as etnias e assumindo feições locais, como ocorre em Divina Pastora, é tema instigante, que permite associar esse fazer feminino, de longa continuidade histórica, às mudanças que vão ocorrendo na sociedade brasileira.
Nessa trajetória, comum a muitas localidades nordestinas, a renda irlandesa, enquanto atividade de mulheres saídas dos canaviais e sem vislumbrarem outras alternativas de trabalho, apresenta-se como fonte geradora de ganhos. Mas é também a expressão local dos processos de mudanças da sociedade brasileira, na qual as mulheres demonstram sua capacidade de adaptar-se às novas situações e de apropriar-se de velhos saberes, transplantados da Europa, aqui introduzidos pela tradição oral, mas também por meio de livros escritos em francês que, com o concurso de freiras ou senhoras da aristocracia, como é o caso de Divina Pastora, eram repassados para as mulheres ricas e pobres.
Embora a renda irlandesa seja hoje produzida em outras localidades de Sergipe, é em Divina Pastora onde há a maior concentração de rendeiras e a atividade tem maior importância socioeconômica e simbólica. Presente na região desde o primeiro quartel do século XX, tornou-se responsável pela ascensão social de muitas mulheres, que abandonaram o árduo trabalho nas roças e, fazendo rendas custearam seus estudos, tornando-se professoras.
Atualmente, mais de uma centena de mulheres dedica-se à renda irlandesa, melhorando as condições de vida de suas famílias. Ao lado da função socioeconômica, a renda irlandesa é um dos sinais distintivos da identidade local, juntamente com a devoção a Nossa Senhora da Divina Pastora, originária do espírito pastoril espanhol, cultuada em majestosa igreja edificada entre os séculos XVIII e XIX, tombada como Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1943, hoje centro de uma grande peregrinação anual.
Trata-se de um saber que se transmite entre as gerações, cujas atoras principais conseguem (re)inventar criativamente as peças de rendas tão bem sumarizadas no relatório. Nessa medida, as menções ao trabalho que se inicia ainda na fase infantil, passando pelo modo de subsistência das rendeiras, bem como a ampla difusão dessa arte no cotidiano de Divina Pastora, guardam profundas ressonâncias nos dias atuais.
Origem - Por que irlandesa? Veio mesmo da Irlanda? Como e quando? Essas são questões que diferentes segmentos sociais se colocam e procuram responder de vários modos. Os mais eruditos buscam reatar laços com as antigas tradições dos ofícios europeus e remontam a história das rendas através dos tempos. Uns a vinculam mais diretamente às rendas de Milão, enquanto outros a consideram mais diretamente vinculada às mudanças que se seguem à revolução industrial e ao papel das freiras na educação das moças no Brasil.
Originárias dos Países Baixos, Norte da Itália, Inglaterra e França, as rendas de agulha - feitas com linhas e as rendas de agulha feitas com fitilho - são combinações de fitilhos ligados por pontos de enchimento e de ligação, barretas e picôs da renda de Veneza, executada sobre uma tela desenhada. A técnica da renda de agulha e fitilho é, portanto, baseada nessa associação da fita estreita presa a uma base e a execução de uma variedade de pontos de agulha que preenchem os espaços vazios formados pela fita que lhes serve de sustentação. Atualmente, esta técnica é utilizada pelas rendeiras de Divina Pastora que simplesmente substituíram o fitilho por um cordão achatado.
No que se refere ao termo irlandesa, há fundamento histórico no seguinte fato: entre as tentativas para evitar o desaparecimento da renda com a revolução industrial, várias iniciativas surgiram a partir de 1872, sob a proteção de Margarida de Savoia, entre as quais o estímulo deste tipo de artesanato nos conventos irlandeses. Sabe-se, por outro lado, que as religiosas estrangeiras foram as principais responsáveis pela educação no Brasil até meados deste século, influenciando, de forma significativa, nos tipos de trabalhos ensinados às alunas. Daí a correlação da renda elaborada em conventos irlandeses e sua difusão, chegando até aqui com esta designação.
Durante o século XIX, quando a influência francesa marcou mais fortemente a sociedade brasileira, entre os livros importados incluíam-se também obras destinadas a ensinar às mulheres uma grande variedade de trabalhos à mão. Era da versão francesa que as freiras e as sinhás se serviam mais frequentemente para aprender os trabalhos manuais registrados com detalhes através do texto escrito e das muitas ilustrações sobre instrumental, materiais, riscos e pontos que permitiam a execução das rendas e dos bordados.
Entre as modalidades de trabalhos incluídos nesta obra consta a renda irlandesa, apresentada como uma das mais difundidas entre as damas, e cujo material básico, o lacêt, se constituía numa especialidade das manufaturas inglesas. Nesse contexto de múltiplas influências européias sobre a sociedade brasileira do século XIX e da circularidade dos saberes entre diferentes segmentos sociais, que se situa a introdução da renda irlandesa, em Divina Pastora.
A importância dos trabalhos de agulha na vida das casas grandes está registrada em vários autores desde a colônia, tendo merecido a atenção de viajantes que a fixam em seus quadros, onde senhoras e escravas dividem o espaço doméstico na elaboração das rendas e bordados. Abolida a escravidão, as relações entre as pessoas ganham novo estatuto jurídico, mas os vínculos formados na convivência diária se prolongam, reelaborando-se novas formas de dependência e/ou colaboração. Os ofícios e artes manuais são exercidos por homens e mulheres livres, muitos dos quais vivem à sombra dos antigos senhores, não mais senhores de escravos, mas de gente e de terras que cedem para o plantio e aos quais se ligam por muitos laços, alguns dos quais mais apertados pelos filhos gerados fora do casamento.
Outros nomes são evocados ao falar-se da história da renda, legitimando-se com eles outros grupos de organização de rendeiras hoje atuantes na cidade, onde antigas mestras têm lugar de destaque no imaginário local. Sinhá, por exemplo, remetia a uma mulher chamada Aurélia como sua mestra; Maria José, mais conhecida como Dé, é referência para tantas outras, formando cadeias em que mestras e aprendizes se desdobravam para criar outras cadeias perpetuadoras da técnica trazida da velha Europa, passada e repassada pelas mãos de centenas de mulheres brancas, negras e mestiças, portanto de diferentes matizes étnicos e sociais.
Os bordados, com os quais muitas vezes a renda se confunde, são executados sobre um tecido preexistente no qual se aplicam os pontos que adornarão a peça. Às vezes são pontos cortados que dão a certos bordados o aspecto de rendilhado causando a impressão de ser uma renda. A renda é, porém, uma construção a partir de fios e, às vezes, também de fitilhos ou cordões; sendo a decoração feita junto com sua execução.
Transmissão do saber - As mulheres de Divina Pastora nascem e crescem vendo parentes e vizinhos às voltas com a renda e são também incentivadas a aprenderem, com pouca idade. Algumas das mais velhas iniciaram-se na renda antes de aprender a ler. Para outras, as duas aprendizagens ocorreram ao mesmo tempo. Para muitas, aprender a fazer renda cedo era um modo de escapar dos pesados trabalhos da roça, pois tinham suas famílias ligadas ao campo, aos engenhos e às fazendas de plantar cana, próximas da pequena vila.
As redes de sua iniciação na arte são formadas por mãe, avós, tias, irmãs, primas e cunhadas; grupos de vizinhanças e de amizade; iniciação autodidata (“fui vendo e fazendo”); e iniciação por meio de cursos regulares promovidos por entidades públicas ou particulares de apoio ao artesanato. Parentesco e vizinhança ainda hoje em Divina Pastora são os suportes mais fortes na relação ensinar-aprender. Tomando-se como referência a iniciação das rendeiras atuais, observa-se uma variação no relacionamento entre as gerações. Fechar