Dicionário do Patrimônio Cultural

Documentação

Verbete

Hilário Figueiredo Pereira Filho

Remete à noção de conjunto de documentos, bem como se refere às ações de coleta, processamento técnico e disseminação de informações. Em linhas gerais, o termo documentação pode ser compreendido como prática com e/ou sobre algum documento ou conjunto documental. Importa destacar a característica de evidenciar vários tipos de registros, garantindo a permanência da informação ao longo dos diferentes contextos históricos. Muito além de agregar as múltiplas expressões do conhecimento humano, a documentação assume a função de representar ideias e objetos que nos informam sobre algo.

Ao qualificar o termo “documento”, Jacques Le Goff afirma que o termo latino documentum, deriva de docere, que significa “ensinar”. Foi apenas no século XVII que se propagou, na linguagem jurídica francesa, a expressão “títulos e documentos”; já o sentido da documentação como “prova” e como “testemunho histórico” foi incorporado a partir do século XIX. Le Goff tece reflexões sobre o conceito de documento na historiografia contemporânea, sendo emblemática a passagem em que discorre sobre a necessidade de empreendemos a análise documental com espírito crítico:

O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio (LE GOFF, 1996, p. 546).

Há várias formas de categorizarmos a documentação, cujas nuances se alternam conforme os elementos presentes nos documentos. Considerando alguns preceitos da Arquivologia, destacam-se: suporte, que se refere ao material sobre o qual as informações são registradas (exemplos: papel, filme, disco magnético); e gênero, que consiste na configuração que assume um documento de acordo com sua própria linguagem (exemplos: textuais, audiovisuais, fonográficos, iconográficos, eletrônicos). Outro qualitativo consiste na conhecida classificação das “três idades”: a documentação corrente agrega documentos nas fases de uso e que estão vinculados às suas finalidades imediatas, sejam administrativas ou legais; a documentação intermediária, a qual aguarda pela definição de seu descarte ou da sua guarda definitiva; e a documentação permanente, que aglutina os documentos preservados devido ao seu valor histórico, destacando as suas potenciais funções científica, social e cultural. 

Porém, antes que se consolidassem esses e outros tipos de classificação, a área da documentação passou por processos estruturantes. Por mais que se considerem os primeiros registros documentais condicionados à própria existência do homem – cujas variantes abarcam desde as tábuas de argila e do papiro na Antiguidade, passando pelos locais de guarda nos mosteiros da Idade Média, além das produções oficiais dos Estados Nação –, pode-se apontar a Revolução Francesa como marco significativo para a lida documental. Isso porque os Arquivos Nacionais foram sendo criados paulatinamente e a perspectiva de atendimento ao cidadão, por meio do acesso à informação, começou a ganhar os primeiros contornos, ainda que de maneira tímida.

O século XIX foi representativo para trabalhos com os documentos: a partir de perspectivas críticas em relação à documentação, tendências historiográficas emergiram, concedendo grande destaque às fontes documentais, e novas técnicas de conservação e restauro possibilitaram uma sobrevida maior aos papéis em que estavam registradas as informações. Em décadas posteriores, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial, percebeu-se uma intensidade ainda maior na produção, transmissão, recepção, difusão, recuperação, acesso e utilização da documentação, tanto do ponto de vista quantitativo como pelo viés qualitativo. Vivenciamos aquilo que estudiosos denominam “revolução documental”, processo este que trouxe uma série de demandas conceituais e metodológicas que apontaram para possíveis integrações interdisciplinares entre Arquivologia, Biblioteconomia, História e Museologia. Nesse contexto contemporâneo, a definição conceitual de documentação perpassa, também, o entendimento de Ciência da Informação, na medida em que ambas lidam com a informação sem se restringirem à ideia de documentos físicos sob guarda em locais como arquivos, museus e bibliotecas (TANUS; RENAU; ARAÚJO, 2012, p. 159).

Tendo em vista que a legislação acompanha, muitas vezes, as dinâmicas e práticas de determinada sociedade, restringiremos nosso olhar para o Brasil no que se refere aos regulamentos, leis e decretos acerca da área da documentação. Os avanços são recentes, a começar pela Constituição Federal de 1988, que foi a primeira Carta Magna que explicitou o termo “documentação” de maneira clara e sistematizada. Em seu artigo 216, inciso IV, parágrafo 2°, nota-se: “cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear a consulta a quantos dela necessitarem”. Observa-se um tom propositivo com fins de preservação e acesso aos documentos, destacando a gestão da documentação, ou seja, todo o processo complexo e dinâmico de produção, classificação, tramitação, descrição, conservação e acessibilidade de documentos com a finalidade de constituirmos arquivos públicos entendidos como instrumentos fundamentais para tomadas de decisões e para comprovações de direitos e deveres, assim como lugares de memória, expressão por demais consagrada pelo historiador Pierre Nora (1993).

A Lei federal nº 8.159, de 08 de janeiro de 1991, conhecida como “Lei de arquivos”, regulamentou os dizeres da Constituição de 1988, reforçando a importância da gestão racionalizada e adequada da documentação, estendendo a política arquivística para os arquivos públicos e privados. Após duas décadas, mais precisamente nos idos de 2011, houve a publicação da nova “Lei de Acesso à Informação” (Lei federal nº 12.527) e do seu respectivo decreto regulamentador (Decreto federal nº 7.724, de 16/05/2012), os quais procuram garantir a todo cidadão o direito fundamental de acesso à informação, ampliando o conceito de documento para unidade de registro de informações, quaisquer que sejam os seus respectivos suportes ou formatos. Sob a perspectiva punitiva, existem o artigo 305 do Código Penal de 1940, a Lei federal nº 9.605, de 12/02/1998, e o Decreto federal nº 6.514, de 22/07/2008, que preveem punições àqueles que cometerem alguma destruição, inutilização ou deterioração dos documentos públicos ou protegidos.

E é justamente sob a perspectiva da preservação do patrimônio documental que interessa destacar outras particularidades brasileiras e internacionais. A Carta de Atenas (1931) se mostra pioneira ao destacar a importância da constituição de arquivos pelos Estados, vinculando a formação desses acervos às publicações técnicas do patrimônio; já a Carta de Veneza (1964) reforça a necessidade da guarda dessa documentação especializada e da sua respectiva disponibilidade. Por mais que o Decreto-lei 25/1937 não explicite o termo documentação, pode-se compreendê-la como parte integrante daquilo que se qualifica como “conjunto de bens móveis e imóveis”. O tombamento de acervos documentais não é prática recorrente nas instituições de patrimônio; isso porque a própria gestão documental, desde que estruturada e em pleno funcionamento, acabará por selecionar aqueles documentos considerados permanentes e históricos. O ato de se tombar ou atribuir valor à documentação ocorre em situações de promoção para acervos considerados representativos ou em situações de risco iminente de perda dos mesmos. Programas como “Memória do Mundo”, promovido pela Unesco, têm lançado luz sobre o patrimônio documental considerado “em perigo” e “valoroso”.

Articulada à atividade de pesquisa, a documentação se mostra um bem cultural imprescindível para as ações preservacionistas do patrimônio. Ambas se nutrem reciprocamente, na medida em que podem trazer à tona registros do passado e do presente, suscitando questionamentos, reflexões, olhares, percepções e problematizações sobre os nossos diversificados acervos. Ações estas que são fundamentais para a constante produção do conhecimento interdisciplinar a partir das múltiplas (re)apropriações desse bem bastante emblemático das nossas memória e história: a documentação.

Fontes consultadas
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HOLLÓS, Adriana Cox. Fundamentos da preservação documental no Brasil. Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 13-30, jul./dez. 2010.
JARDIM, José Maria. A invenção da memória nos arquivos públicos. Ciência da Informação, Rio de Janeiro, n. 2, p. 186-190, 1995.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: ______. História e memória. Campinas: Unicamp, 1996. p. 535-553.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.
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SMIT, Johanna. A documentação e suas diversas abordagens. Documentação em Museus/Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST. Colloquia, Rio de Janeiro, v. 10, p. 11-23, 2008.
SOLIS, Sydney Sergio Fernandes; ISHAQ, Viven. Proteção do patrimônio documental: tutela ou cooperação? Revista do Patrimônio, Rio de Janeiro, n. 22, p. 186-190, 1987.
TANUS, Gabrielle Francinne de S. C; RENAU, Leonardo Vasconcelos; ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. O conceito de documento em Arquivologia, Biblioteconomia e Museologia. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 158-174, jul./dez. 2012.

Como citar: PEREIRA FILHO, Hilário Figueiredo. Documentação. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6

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Ficha Técnica

Hilário Figueiredo Pereira Filho Graduado (2003) e mestre (2006) em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutorando em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Professor do Corpo Docente Permanente do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (PEP-MP/IPHAN). Historiador concursado do IPHAN (2006): trabalhou na Superintendência do IPHAN em Sergipe e, atualmente, está lotado na Coordenação-Geral de Pesquisa e Documentação do IPHAN no Rio de Janeiro (Copedoc). Realiza trabalhos técnicos na área de patrimônio cultural, em especial nos municípios de Minas Gerais e de São Paulo, através do Grupo Gema Arquitetura.