Dicionário do Patrimônio Cultural

Memória Ferroviária

Verbete

Lucas Neves Prochnow

O processo de patrimonialização de um bem, ou de um conjunto de bens, ocorre a partir de ações e de discursos específicos. As ações partem de práticas institucionais motivadas, ou balizadas, por atribuições legais; em menor medida, e mais recentemente, também partem de demandas sociais. Já os discursos se sustentam no uso de categorias e de conceitos ativados para justificar a relevância e provar a necessidade dessas ações, com o objetivo de reconhecer e garantir direitos. A privatização da Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA) e consequentemente sua extinção trouxeram a necessidade de preservação de seu patrimônio histórico, artístico e documental produzido e acumulado desde a implantação da ferrovia no país, na segunda metade do século XIX. Por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a proteção desse patrimônio implicou na criação e articulação de um discurso sobre o conceito de memória ferroviária, ao mesmo tempo em que foi necessário desenvolver e aplicar um novo instrumento de preservação.

Desde a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), a atuação do Estado brasileiro na proteção de bens ferroviários seguiu a prática de tombamento de bens imóveis de acordo com o Decreto-lei nº 25, de 1937, com a seleção de exemplares desse universo para compor o acervo do patrimônio histórico e artístico nacional. Nas atas do Conselho Consultivo, os valores atribuídos a esses bens tombados se referiam sempre à excepcionalidade ou monumentalidade do projeto ou da arquitetura, seja de estações (caso da Estação da Luz/SP - Processo nº 0944-T-76), de vilas ferroviárias (caso da vila ferroviária de Paranapiacaba/SP – Processo nº 1252-T-87) ou de pátios ferroviários (caso do pátio ferroviário da estrada de ferro Madeira-Mamoré/RO – Processo nº 1220-T-87). As atas também se referiam ao valor histórico, ressaltando questões como o desenvolvimento econômico proporcionado pela ferrovia, bem como a interiorização da ocupação do território brasileiro. Em menor medida, a perspectiva da história social do trabalho ferroviário foi valorizada como uma dimensão importante. Assim, nos processos de tombamento dos bens é marcante a utilização de critérios individualizados para cada caso, entretanto, essa individualização não impediu a formação de um quadro referencial mínimo que orientou novos tombamentos sobre bens ferroviários.

Comumente, diferentes disciplinas acadêmicas relacionaram a importância da ferrovia a temas da história do país (incluindo ocupação do território, desenvolvimento urbano, desenvolvimento econômico, entre outros), da arquitetura ferroviária (novas técnicas construtivas, novas soluções de projetos, novos materiais, entre outros) e das relações socioeconômicas desenvolvidas, desde o momento da instalação da primeira ferrovia no Brasil, na década de 1840, até o momento em que essa modalidade de transporte perdeu importância em favor do modal rodoviário, por volta dos anos 1960. 

Só recentemente, a partir de determinação legal dada pela Lei nº 11.483/2007, o IPHAN foi responsabilizado por traçar uma estratégia para proteção em massa dos bens ferroviários oriundos da extinção da RFFSA. O art. 9º da referida Lei atribuiu ao IPHAN a responsabilidade de “receber e administrar os bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua guarda e manutenção”. Ficariam, assim, garantidas a “preservação e a difusão da memória ferroviária”, que seriam promovidas por uma série de ações elencadas no parágrafo 2º do art. 9º: “I – construção, formação, organização, manutenção, ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos e outras organizações culturais, bem como de suas coleções e acervos; II – conservação e restauração de prédios, monumentos, logradouros, sítios e demais espaços oriundos da extinta RFFSA”.

Formulada dentro do parlamento brasileiro com a intervenção das associações de ferroviários, a categoria memória ferroviária foi aplicada por meio de política pública para agir na preservação do patrimônio ferroviário. Tal como consta na supracitada Lei, o legislador equivaleu a categoria memória ferroviária a patrimônio ferroviário, segundo as práticas históricas de atribuição de valor e proteção que formaram o campo de conhecimento da instituição. 

Em 2010 a Portaria IPHAN nº 407 normatizou o processo para patrimonialização dos bens ferroviários e estabeleceu a sua preservação por meio da inscrição na denominada Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário. Inaugurou-se, assim, um novo instrumento de preservação cultural, a inscrição na referida Lista, que prescinde de avaliação do Conselho Consultivo do órgão, mas não da aprovação pela Comissão de Avaliação do Patrimônio Cultural Ferroviário, criada na Portaria.  Entre outras responsabilidades, a mesma exprimiu a necessidade de gestão coletiva do patrimônio ferroviário entre a União, os estados, municípios e entidades da sociedade civil. 

A Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário seguiu inscrevendo bens considerados como constituintes da memória ferroviária. Tanto a Lei quanto a Portaria operam a partir da equivalência entre memória ferroviária e patrimônio ferroviário, que se realiza na pressuposição de que todo e qualquer elemento físico relacionado à ferrovia gerou alguma memória. 

Pode-se considerar o conceito ou categoria memória ferroviária como fiel à história monumental e tradicional, pois generaliza as especificidades com o objetivo de criar um discurso de unidade sobre um passado que foi heterogêneo, confundindo recordação, que é uma vivência direta e gera uma memória direta, com a imagem do passado, que não possui um testemunho sobre o fato.

A generalização sobre o conceito de memória ferroviária objetificou uma política de preservação de grande envergadura, que pressupõe haver uma memória ferroviária em todos os lugares e que ela é facilmente associada a quaisquer valores (histórico, artístico, paisagístico, arquitetônico, belas artes, memória etc.). 

Tal qual a memória coletiva, a memória ferroviária é uma totalização, uma invocação ao todo, que em sua enunciação pretende obter certa adesão social, ainda mais quando seu uso pressupõe uma importância imanente que deriva de sua proteção como patrimônio.

Fontes consultadas
BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.
______. Lei nº 10.233, de 31 de maio de 2007. Dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário, altera dispositivos da Lei nº 10.233, de 05 de junho de 2001, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 31 de maio de 2007. 
______. Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007. Dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário, altera dispositivos da Lei nº 10.233, de 05 de junho de 2001, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, 31 de maio de 2007. 
BRASIL. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Portaria nº 486, de 29 de novembro de 2012. Aprova o regimento interno do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Brasília, DF, 2012.
______. Portaria nº 407, de 21 de dezembro de 2010. Dispõe sobre o estabelecimento dos parâmetros de valoração e procedimento de inscrição na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, visando à proteção da memória ferroviária, em conformidade com o art. 9º da Lei nº 11.483/2007. Diário Oficial da União. Brasília, 23 de dezembro de 2007.
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
CAVALCANTI NETO, José Rodrigues; CARNEIRO, Fernanda Gilbertoni; GIANNECCHINI, Ana Clara. Avanços e desafios na preservação do patrimônio ferroviário pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. In: VI Colóquio Latino Americano sobre Recuperação e Preservação do Patrimônio Industrial, 2011. 
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
IPHAN. Processo de Tombamento nº 0944-T-76. Estação da Luz (SP). Arquivo Central do IPHAN/Seção Rio de Janeiro.
______. Processo de Tombamento nº 1220-T-87. Estrada de Ferro Madeira Mamoré (RO). Arquivo Central do IPHAN/Seção Rio de Janeiro. 
______. Processo de Tombamento nº 1252-T-87. Vila Ferroviária de Paranapiacaba (SP). Arquivo Central do IPHAN/Seção Rio de Janeiro.
PROCHNOW, Lucas Neves. O Iphan e o patrimônio ferroviário: a memória ferroviária como instrumento de preservação. 2014. 177 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural) – IPHAN, Rio de Janeiro, 2014.

Como citar: PROCHNOW, Lucas Neves. Memória ferroviária. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6

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Ficha Técnica

Lucas Neves Prochnow Historiador, mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo PEP/MP/IPHAN.