Dicionário do Patrimônio Cultural

Valor etnográfico

Verbete

Ana Gonçalves

O valor etnográfico no IPHAN é um valor de tombamento que se relaciona à apreensão da cultura pela coisa material. Diz respeito, portanto, a um valor atribuído a bens materiais classificados como etnográficos e inscritos no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico – LAEP. Esse valor pode fazer referência a um bem cultural considerado excepcional por sua unicidade, a exemplo do Estádio do Maracanã (IPHAN, 2000), tombado pela “extraordinária monumentalidade do Estádio Mário Filho e seu valor simbólico para a quase totalidade do povo brasileiro de todas as regiões e não apenas os habitantes do Rio de Janeiro” (REIS FILHO, 2000, p. 4). Nesse caso, a unicidade do bem cultural reside na relação, singular, que “a quase totalidade” da população brasileira estabelece com essa materialidade específica. O valor etnográfico pode ainda relacionar-se à exemplaridade do bem quando se observa sua representatividade na categoria de bem cultural em que está inserido. Este é o caso da Casa Presser (IPHAN, 1985), residência acautelada por se tratar de um exemplar que exibe o uso da técnica construtiva teuto-brasileira.

Como classificação, o valor etnográfico está relacionado fortemente com o uso cultural ao qual a coisa material faz referência e com o qual apresenta uma dinâmica diferenciada. Isso porque, nos patrimônios assim classificados, o uso não apenas contribui para configurar seu valor cultural, como também para determinar as diretrizes a serem tomadas na gestão do bem cultural uma vez patrimonializado.
A Carta de Nara (UNESCO, 1994) e a Carta de Brasília sobre Autenticidade (CONE SUL, 1995) são dois textos patrimoniais que balizam essa perspectiva. Em decorrência do alargamento do conceito de patrimônio cultural, recomendam que a determinação da legitimidade e o julgamento de valor sobre um dado bem sejam baseados na relação que este estabelece com seu meio e com os contextos culturais nos quais se insere, deslocando para segundo plano os critérios estilísticos fixos.

As tradições, os saberes, os valores e os sentimentos associados aos bens culturais surgem como aferidores de sua legitimidade como patrimônio. Constituindo-se num valor, a dimensão etnográfica se vinculará à identidade, sempre mutável e dinâmica, permitindo que os aspectos formais e simbólicos desses patrimônios sejam alterados, sem que isso constitua mutilação do bem.

Sendo assim, a identidade da coletividade como elemento de aferição para a atribuição de valor é muito relevante porque permite o reconhecimento do papel fundamental que o grupo de referência possui para a continuidade de um bem cultural cujo valor atribuído é o etnográfico. Ou seja, a perpetuação desse valor atribuído poderá apenas concretizar-se se assim quiser o grupo de referência. Todavia, essa interpretação influenciada pela perspectiva antropológica suscita algumas questões importantes quando transplantada para o universo das políticas públicas de patrimônio federal.

A primeira delas é que há profundas diferenças entre o etnográfico antropológico e o valor etnográfico acionado nas ações de preservação do patrimônio material no IPHAN. Enquanto o primeiro se insere no contexto de uma disciplina autônoma comprometida com o estudo aprofundado do ser humano em suas múltiplas dimensões, o segundo diz respeito às ações reguladas e regradas por ordenamentos jurídicos, implementadas por agentes públicos em processos administrativos próprios, a fim de preservar bens culturais reconhecidos pelo Estado como portadores de valor e significado para a sociedade brasileira.

Além disso, se por um lado, os antropólogos têm na noção de etnográfico uma ferramenta para classificar determinados objetos de estudo (o objeto etnográfico), um fenômeno ou uma classe de fenômenos delimitados que se analisa a fim de compreender algo (a etnografia), por outro, os agentes de preservação patrimonial do Estado “fabricam seus etnográficos”, materializados em patrimônios culturais por meio de atribuição de valor. E fazem isso ao enquadrarem identidades e subjetividades em leis, portarias e decretos, valorizando-as e selecionando-as a partir do conhecimento que detêm sobre o bem cultural; classificando-as em concordância ao disposto no Decreto-lei nº 25, de 11 de novembro de 1937. Isso significa que a constituição do patrimônio material protegido, incluindo o patrimônio cujo valor atribuído é o etnográfico, prescinde da aprovação ou do consentimento do grupo ao qual o bem cultural faz referência ou de seu proprietário. Assim, se o etnográfico antropológico preexiste, o etnográfico do patrimônio material passa a existir após sua valoração como tal pelo poder público.

Cabe destacar que, diferentemente do tombamento, a abordagem proposta pelo Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000, no qual é instituído o registro do patrimônio imaterial, impede a abertura de processo de registro sem que haja o consentimento de seus detentores. O processo de atribuição de sentidos ao bem cultural por seus detentores desempenha, portanto, um papel central na constituição dessas referências culturais. Vinculadas ao universo simbólico das representações que configuram as identidades coletivas, essas referências fazem remissão tanto às materialidades quanto às imaterialidades que integram o complexo sistema de ressignificações elaborado pelo grupo em sua autorrepresentação. Dessa forma, o grupo de referência é ao mesmo tempo protagonista, porque produtor da cultura, e intérprete de seu patrimônio. 

Contudo, em ambos os casos de tombamento e registro, no âmbito da política federal de preservação, não se pode falar em patrimônio – material e imaterial – que não prescinda de atribuição de valor e consagração oficiais.

Outra dificuldade do valor etnográfico de tombamento ser concebido como o mesmo etnográfico da antropologia diz respeito ao fato de que a existência de uma manifestação cultural patrimonializada, orientada exclusivamente pelos termos do grupo de referência, pode não corresponder aos objetivos e interesses do instrumento jurídico de proteção, cuja intenção é a de manter, não as múltiplas e variadas apropriações que a comunidade faz da manifestação cultural, mas o valor cultural atribuído pelo IPHAN em determinado momento. 

Fontes consultadas
BRASIL. Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. In: IPHAN. Coletânea de leis sobre preservação do patrimônio cultural. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006, p. 99-107.
_______. Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm>. Acesso em: 25 fev. 2014.
CONE SUL. Documento regional do Cone Sul sobre autenticidade. 1995. Disponível em: <http://portal.IPHAN.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=265>. Acesso em: 25 fev. 2014.
GONÇALVES, Ana. As dinâmicas das duas metades: tombamento e patrimônio etnográfico no IPHAN. 2013. 155 f. Dissertação (Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural) – IPHAN, Rio de Janeiro, 2013.
IPHAN. Processo nº 1094-T-83. Estádio do Maracanã (Estádio Mário Filho). Arquivo Central do IPHAN/Seção Rio de Janeiro. Documento digitalizado, 2000. 
_______. Processo nº 1113-T-84. Casa Presser na Av. Daltro Filho, 929. Arquivo Central do IPHAN/Seção Rio de Janeiro. Documento digitalizado, 1985.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Parecer sobre o processo 1094-T-83 de tombamento do Estádio Mário Filho (Maracanã). In: Processo nº 1094-T-83, v. 2, p. 4, 2000. Arquivo Central do IPHAN/Seção Rio de Janeiro.
UNESCO. Conferência de Nara de novembro de 1994. Conferência sobre autenticidade em relação à convenção do Patrimônio Mundial Unesco, ICROM e ICOMOS. Disponível em: <www.icomos.org.br/cartas/Carta_de_Nara_1994.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2014. 

Como citar: GONÇALVES, Ana. Valor etnográfico. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6

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Ficha Técnica

Ana Gonçalves Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo IPHAN.