Dicionário do Patrimônio Cultural
Fotografia
Verbete
Bettina Zellner Grieco
Um híbrido entre técnica e arte, a fotografia se tornou um eficaz instrumento para o campo da preservação cultural, devido às suas características de fornecer registros, de servir como fonte histórica e como documento visual, e de ser ela própria um bem cultural, imbuído de memória, identidade, e valores individuais e coletivos.
A fotografia desenvolveu-se a partir de estudos de óptica – particularmente estudos referentes à câmara escura –, e de estudos sobre as propriedades de fotossensibilidade de certas substâncias químicas, especialmente sais de prata, que reagiam aos efeitos da luz com o escurecimento e com a formação de imagens (OLIVEIRA, 2008, p. 54). Experiências realizadas ao longo do século XIX pela indústria fotográfica europeia e norte-americana possibilitaram o surgimento da fotografia como a conhecemos hoje, contribuindo para a democratização do seu uso, a partir da diminuição dos custos de produção. No Brasil, a fotografia foi introduzida na década de 1840, sendo praticada principalmente por profissionais estrangeiros, que produziam retratos e álbuns de família, em seus estúdios, e, posteriormente, registros de monumentos e paisagens.
Le Goff considera que o fenômeno da fotografia democratizou a memória, dando-lhe “uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica” (LE GOFF, 2012b, p. 446), com destaque para os álbuns de família e os cartões-postais, que se colocavam como uma prova material de nossa existência.
Por meio da história visual de uma sociedade, as fotografias permitem o conhecimento de sua cultura material. Fragmento congelado de realidade, uma fotografia original é por si só um “objeto-imagem: um artefato no qual se podem detectar em sua estrutura as características técnicas típicas da época em que foi produzido” (KOSSOY, 2012, p. 42. grifos do autor).
Ao documentarem a expressão cultural dos povos, “exteriorizada através de seus costumes, habitação, monumentos, mitos e religiões, fatos sociais e políticos” (KOSSOY, 2012, p. 28), as fotografias passam a ser utilizadas como registro em apoio aos estudos específicos nas áreas da arquitetura, antropologia, etnologia, arqueologia, história social.
Em relação ao campo do patrimônio, o uso da fotografia como instrumento de preservação teve a França como precursora a partir da atuação da Commission des Monuments Historiques, que, com o objetivo de mapear e fotografar os monumentos de diversas regiões da França, realizou em 1851 cinco missões heliográficas, integradas por fotógrafos da Societé Française de Photographie (VASQUEZ, 2012, p. 90-91).
No Brasil, sob o comando do então diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade, foi feito, no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), um amplo trabalho de documentação do que era considerado patrimônio nacional, principalmente, de bens relativos aos séculos XVI, XVII e XVIII, para justificar o seu tombamento. Além da consulta a documentos e da elaboração de levantamentos que contemplassem o histórico dos bens, sua descrição técnica, seu estado de conservação e suas referências bibliográficas, o trabalho era complementado com desenhos e fotografias.
O interesse pela fotografia e pelo campo audiovisual de modo geral já havia sido expresso por Mario de Andrade em seu Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional, de 1936. Nele, o escritor reconhecia a fotografia como um dos requisitos para acompanhar as propostas de tombamento de um bem (ANDRADE, 2002, p. 282), incluindo, na Seção de Publicidade (item VI), a criação da Repartição “foto-fono-cinematográfica”, responsável por “todo o serviço nacional de fotografia, fonografia e filmagem do patrimônio artístico nacional” (Ibid., p. 284), a qual executaria os trabalhos determinados pela Chefia do Tombamento.
A contratação de fotógrafos para documentar os bens culturais brasileiros ocorreu de forma significativa desde a criação do SPHAN, em 1937, até a década de 1960 (FONSECA; CERQUEIRA, 2013, p. 9). Para a orientação dos trabalhos contratados, os fotógrafos eram, quando possível, acompanhados de um arquiteto ou técnico, que indicava o que devia ser fotografado para compor a documentação de um monumento. Caso não pudessem ser acompanhados no trabalho de campo, eram fornecidas aos fotógrafos instruções detalhadas, como afirma Erich Hess – um dos primeiros fotógrafos contratados pelo SPHAN –, que recebeu do arquiteto Lucio Costa, desenhos com detalhes de monumentos ou obras de arte a serem registrados (GRIECO, 2013, p. 40). Posteriormente, os próprios técnicos passaram a fotografar o patrimônio cultural, “possivelmente em função do aumento da distribuição no Brasil de equipamentos fotográficos e do crescimento de funcionários” (LIMA; MELHEM; CUNHA, 2008, p. 9-10).
Como forma de organizar os trabalhos de registros visuais, foram estabelecidas, por meio da Portaria nº. 3, de 8 de janeiro de 1948, intitulada Fotografias de obras de valor artístico e histórico, instruções a serem observadas pelos técnicos e auxiliares incumbidos de colher fotografias de bens culturais. Era necessária, para fins de inventário, a produção de fotografias de exterior e de interior, de imagens, mobiliário, prataria, quadros e painéis, entre outros bens móveis.
Para as fotografias de exterior eram solicitadas fotos: de conjunto; das fachadas principais, posteriores e laterais; de detalhes, como beiral, platibanda, portada, colunas, janelas, sacadas, grades etc. O fechamento de esquadrias, a remoção de objetos, como vasos e toalhas, não originais ao local e a determinação de que não figurassem nas fotografias “pessoas, animais ou quaisquer objetos pitorescos” (FONSECA; CERQUEIRA, 2013, p. 25) eram outros dos aspectos observados.
No ano seguinte, em 1949, Lucio Costa sugere, por meio do Plano de Trabalho para a Divisão de Estudos e Tombamento (DET) da DPHAN, a criação de pequenas equipes, constituídas de um fotógrafo e de um técnico habilitado, “possivelmente a mesma pessoa” (COSTA, 2004), tanto na sede como nos distritos regionais. Essas equipes se encarregariam de produzir “batidas sistemáticas para colheita de material de inventário, não somente nas regiões acessíveis, como também e principalmente, nas zonas de acesso difícil servidas por caminhos antigos” (COSTA, 2004).
Fatores, como a dificuldade de acesso às diversas localidades e as limitações financeiras, que impediam os técnicos de irem a campo, foram contornados por meio da utilização de fotografias. Esses registros viabilizaram os estudos e a fiscalização dos trabalhos executados nas obras de conservação e restauração do SPHAN e serviram como “instrumentos de consulta e pesquisa por parte dos técnicos do SPHAN e pesquisadores da área de patrimônio” (FONSECA; CERQUEIRA, 2013, p. 21).
O Arquivo Central do IPHAN/ Seção RJ conta com um acervo de cerca de 200 mil imagens, distribuídas entre diferentes séries (Série Inventário, Série Obras, Série Personalidades, Série Processos de Tombamento, Série Etnografia, Série Negativos Históricos, Série Slides). O interesse de Rodrigo M. F. de Andrade em formar um acervo fotográfico no SPHAN teve início a partir dos trabalhos produzidos por fotógrafos contratados, como: Erich Hess; Marcel Gautherot; Herman Graeser; Harald Schultz; Eduard Schultze; Kasys Vosylius; Edgar Cardoso Antunes; Peter Lange; Paul Stille; Pierre Verger (FONSECA, CERQUEIRA, 2003, p. 23). Em uma pesquisa realizada pela Copedoc/IPHAN em 2008 foram identificados, no período de 1937 a 1987, 353 profissionais (LIMA et al, 2008, p. 10) – número que inclui fotógrafos profissionais e técnicos da instituição.
Fontes consultadas
ANDRADE, Mário de. Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 30, p. 271-287, 2002.
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Como citar: GRIECO, Bettina. Fotografia. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6
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Ficha Técnica
Bettina Zellner Grieco Arquiteta e urbanista; possui especialização em História da Arte e Arquitetura pela PUC (RJ) e mestrado em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ). Atualmente trabalha na Copedoc/ DAF/ IPHAN, Rio de Janeiro.