Dicionário do Patrimônio Cultural

Revitalização

Verbete

Marcelo Antonio Sotratti

Podemos inicialmente apreender o conceito de revitalização como uma prática projetual ou um processo socioespacial liderado estrategicamente por determinados grupos associados ao planejamento urbano contemporâneo. A estruturação da cidade contemporânea depende, de acordo com Meyer (2000), de grandes projetos urbanos estratégicos. O valor estratégico de tais projetos está subordinado, segundo a autora, à sua capacidade de provocar transformações significativas no espaço metropolitano, aumentando seu poder de atratividade e influência. Mais do que simplesmente melhorias urbanas pontuais e específicas, o planejamento urbano contemporâneo se revela, na intencionalidade de seus defensores, como um instrumento capaz de promover a agregação do território metropolitano e de organizar os fluxos que evitam a dispersão funcional e espacial.

O planejamento estratégico, liderado pelos urbanistas catalães, pode ser considerado como um dos exemplos mais emblemáticos do planejamento urbano contemporâneo. Baseados nas premissas neoliberais do planejamento econômico-administrativo de empresas, esses urbanistas, que defendem o planejamento estratégico, consideram a cidade como um sistema organizacional complexo que deve atuar de forma coerente e racional segundo seus próprios interesses e, ainda, deve se relacionar de forma competitiva com uma rede de cidades para atrair investimentos e oportunidades de desenvolvimento (BARQUERO, 1993). Nessa lógica, a refuncionalização de áreas urbanas obsoletas, carregadas de conteúdos simbólicos, como centros históricos, por exemplo, representa uma estratégia crucial desse modelo de planejamento.

A refuncionalização de espaços urbanos degradados consiste no processo de transformação de funções de elementos arquitetônicos de um determinado processo histórico pretérito. A refuncionalização é uma consequência natural da própria reestruturação socioespacial de determinada cidade, liderada por alguns grupos sociais. Dependendo da força dos grupos sociais e de suas intencionalidades, esse processo pode abranger escalas distintas, como edifícios, bairros, cidades ou mesmo regiões.

No entanto, quando esse processo está associado a uma estratégia definida por modelos de planejamento, recebe denominações distintas. É o caso da revitalização urbana. A revitalização consiste na refuncionalização estratégica de áreas dotadas de patrimônio, ou seja, de objetos antigos que permaneceram inalterados no processo de transformação do espaço urbano, de forma a promover uma nova dinâmica urbana baseada na diversidade econômica e social (MOURA et al., 2006). Essa estratégia, adotada de forma precursora pela cidade de Barcelona, na Espanha, disseminou-se por diversas cidades do mundo assumindo diferentes denominações idiomáticas: gentrification, no Reino Unido; rehabilitation/ refurbishment e renovation, nos EUA; réhabilitacion, na França; rehabilitación, na Espanha, são algumas denominações empregadas em programas que adotam tal estratégia.

Todas essas denominações se referem comumente à estratégia de valorização de áreas dotadas de patrimônio cultural que passam por processos degradativos. Por meio de uma refuncionalização dirigida e estratégica, o emprego de funções vinculadas ao capitalismo global, como turismo, cultura, negócios, comércio e residências, é incentivado nessas ações de planejamento urbano.

No Brasil, o termo inicialmente e amplamente empregado foi revitalização urbana. No entanto, a precisão e a riqueza da língua portuguesa fizeram surgir uma séria discussão entre os profissionais envolvidos com tal prática, uma vez que o termo revitalização claramente sugere uma conotação de exclusão dos usos e de grupos sociais que ocupavam tais áreas antes da implantação dessa estratégia (OLIVEIRA, 2002; ARANTES, 2000). Esse debate fez surgir outros termos equivalentes, como recuperação, reabilitação, renovação, requalificação e gentrificação. As discussões acerca das especificidades de cada termo empregado nesses projetos de refuncionalização ainda permanecem, não havendo consenso entre os profissionais envolvidos com o planejamento e o estudo dos espaços urbanos (VARGAS, 2006; MOURA et al., 2006).

No entanto, o patrimônio é o elemento central do modelo: através de sua refuncionalização, acompanhada pela manutenção e modernização de suas formas originais, o patrimônio cultural refuncionalizado possibilita a inserção de atividades de amplo interesse da sociedade contemporânea. Dentre estas atividades, o turismo representa – conforme o discurso da requalificação/revitalização urbana – a forma de ressaltar a identidade local e, ao mesmo tempo, conduzir as áreas dotadas de patrimônio cultural a novas dimensões de desenvolvimento.

A substituição sistemática do termo revitalização por requalificação urbana é evidente nos projetos e ações observadas recentemente em centros históricos degradados ou edifícios isolados. Comumente presente em planos estratégicos de cidades atuais, a requalificação apresenta propostas alicerçadas na recuperação e na valorização das origens e das verdadeiras representações sociais, humanizando e controlando o sistema de exclusão das cidades contemporâneas (se opondo ao sentido excludente do termo revitalização), e, ao mesmo tempo, reinventando identidades baseadas em produções socioculturais locais.

O discurso central da requalificação urbana evidencia a tentativa de inclusão social de uma população marginal em novos espaços sadios e revalorizados, onde relações sociais includentes seriam estabelecidas e reforçadas por novas funções urbanas. Para Almeida (2001, p. 9),

A requalificação das áreas centrais inclui-se hoje nos projetos de desenvolvimento das nações e muitas cidades já vêm recuperando e modernizando os seus centros como instrumento de inserção na ordem mundial. Os princípios, conceitos, avaliações estratégicas e perspectivas que então se percebiam, estão hoje confirmados. Daí a importância de divulgar cada vez mais essas ideias, de retomar os fundamentos do debate, reexaminá-los à luz dos desenvolvimentos mais recentes e submetê-los à prova de observação empírica e do confronto de ideias.

Solá-Morales (2001) salienta que o processo de requalificação urbana deve, primeiramente, partir da análise da importância simbólica e arquitetônica do patrimônio cultural, antes de se definir a política urbana ideal das intervenções. Apreciação da história, valor da memória e qualidade estético-arquitetônica são alguns elementos de análise ressaltados pelo autor. Da mesma forma, a potencialidade econômica e a infraestrutura de tais áreas devem também ser consideradas nas estratégias a serem empregadas na requalificação.

Aparentemente essas iniciativas adotaram princípios projetuais que valorizaram uma nova forma de integração socioespacial, mas cabe a discussão e a análise minuciosa dos pesquisadores do campo do patrimônio para observar se os fins foram alcançados ou se sofreram desvios no sentido de apenas reforçar o apelo consumista e espetacularizante de tais espaços. De modo geral, as novas formas incorporadas nesses locais foram agregadas aos valores de consumo local e os conflitos socioespaciais permanecem em muitas dessas áreas.

Fontes consultadas
ALMEIDA, Marco Antonio Ramos de. Apresentação. In: MEYER, Regina Maria Prosperi (Org.). Os centros das metrópoles: reflexões e propostas para a cidade democrática do século XXI. São Paulo: Associação Viva o Centro; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Editora Terceiro Nome, 2001.
ARANTES, Otília Beatriz Fiori; MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos B. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
BARQUERO, António Vázquez. Política Econômica Local – la respuesta de las ciudades a los desafios de ajuste productivo. Madrid: Ediciones Pirâmide, 1993.
MEYER, Regina Maria Prosperi. Atributos da Metrópole Moderna. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 14, n. 4, p. 105-110, 2000.
MOURA, Dulce; GUERRA, Isabel; SEIXAS, João; FREITAS; Maria João. A revitalização urbana cidades – contributos para a definição de um conceito operativo. Comunidades e Territórios, n. 12/13, p. 15-34, dez. 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. Aproximações ao Enigma: que quer dizer Desenvolvimento Local? In: SPINK, Peter; BAVA, Sílvio Caccia; PAULIKS, Verônica. Novos contornos da gestão local: conceitos em construção. São Paulo: Polis, 2002.
SOLÁ-MORALES, Manuel de. Ações Estratégicas de Reforço do Centro. In: MEYER, Regina Maria Prosperi (Org.). Os centros das metrópoles: reflexões e propostas para a cidade democrática do século XXI. São Paulo: Associação Viva o Centro; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Editora Terceiro Nome, 2001.
VARGAS, Heliana Comim; CASTILHO, Ana Luisa Howard de. Intervenções em centros urbanos: objetivos e resultados. Barueri, SP: Manoele, 2006.

Como citar: SOTRATTI, Marcelo Antônio. Revitalização. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6.

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Ficha Técnica

Marcelo Antonio Sotratti Doutor e mestre em Geografia pela Unicamp. Professor-adjunto do Curso de Turismo, coordenador do Laboratório de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor do corpo permanente do Programa de Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio do IPHAN e professor pesquisador-bolsista APQ-1 da Faperj. Desenvolve pesquisas na área de Planejamento Territorial, Patrimônio Cultural e Turismo. Em 2008 e 2009 atuou na Embratur/Unesco no desenvolvimento de Projeto de Promoção e Marketing Turístico do Turismo Cultural.