Dicionário do Patrimônio Cultural

Gravura

Verbete

Renata Santos

Gravura, de forma geral, diz respeito tanto à técnica utilizada para produzir um desenho a partir de uma matriz, como a própria imagem gerada a partir desse processo (que também admite, do mesmo modo genérico, a designação de estampa). De forma específica, os diferentes tipos de gravura remetem ora à matriz empregada, ora ao instrumento utilizado para talhar a imagem desejada, sendo as técnicas mais conhecidas a xilografia, para o desenho cunhado em madeira; a calcografia ou buril para a gravura em metal (sendo kalkos a palavra em grego para cobre, e buril, a ferramenta utilizada para a gravação nesse material); e a litografia, para a gravura obtida a partir de um determinado tipo de pedra.
Segundo Orlando da Costa Ferreira (1994, p. 29), gravura

[...] é a arte de transformar a superfície plana de um material duro, ou, às vezes, dotado de alguma plasticidade, num condutor de imagem, isto é, na matriz de uma forma criada para ser reproduzida certo número de vezes. Deve para isso a placa ou a prancha desse material ser trabalhada de modo a somente transmitir para o papel (que é o suporte de reprodução mais regularmente empregado), por meio da tinta (o elemento ‘revelador’), e numa operação de transferência efetuada mediante pressão, parte das linhas e/ou zonas que estruturam a forma desejada.

A xilografia foi o primeiro processo utilizado na Europa, ainda no final do século XIV. Eram os chamados impressos tabulares, onde imagem e letra eram gravados no mesmo bloco de madeira e impressos sob pressão manual, de uso essencialmente religioso. A partir do século XV, a imagem gravada extrapolou os muros religiosos, desenvolvendo-se rapidamente. Significou, em um primeiro momento, a possibilidade de reproduzir uma imagem em escala, transformando o alcance do desenho único, da mesma forma que o texto impresso transformou o manuscrito. Tanto um processo quanto o outro representou uma revolução nos meios de comunicação, sobretudo, mas não só, pela possibilidade de padronização da informação e ampliação da circulação do conhecimento.

Desde o final da Idade Média, aprimoram-se diferentes usos e técnicas da gravura, tanto dentro do campo das artes gráficas quanto das artes plásticas: desde a ilustração de livros de cunho científico e literário, passando pela reprodução de pinturas, até a representação de mapas, retratos, paisagens, selos, rótulos, baralhos, cartazes. Ganhavam ainda contornos sofisticados como discurso visual as caricaturas de cunho político e social e as de crítica de costumes.

No Brasil, a produção oficial de gravuras iniciou-se juntamente com a tipografia – aspecto ainda muito pouco estudado – após a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. É provável que as prensas e objetos próprios desse ofício tenham vindo na mesma nau Medusa, juntamente com os tipos e prelos destinados ao funcionamento da Impressão Régia, talvez graças à ação do frei José Mariano da Conceição Veloso, responsável pela emblemática Oficina Calcográfica, Tipoplástica e Literária do Arco do Cego, importante ateliê de gravura portuguesa.

Diferentemente de outros países da Europa, a gravura em Portugal manteve-se atrelada à tipografia, podendo seu desenvolvimento ser divido em três fases: a primeira, que vai do século XV ao século XVI; a segunda, do século XVII até a primeira metade do século XVIII, principalmente com a criação da Academia Real de História Portuguesa, em 1720; e a terceira, associada à Tipografia Acadêmica e à Impressão Régia, a partir da segunda metade do século XVIII (CHAVES, 1927).

Em relação à primeira fase, é possível distinguir dois tipos de gravuras, classificadas a partir da produção de textos: uma “erudita”, produzida desde o século XVI, presente em tratados religiosos, romances e estudos científicos, e outra “popular”, predominante, sobretudo, nos livros de literatura de cordel. Enquanto no século XVIII a gravura “popular” continuou associada às narrativas de monstros, cativeiros e grandes crimes, a gravura “erudita” ou “artística” deu um salto, com a criação da Academia Real da História Portuguesa, considerada a idade de ouro da gravura em Portugal. Em 1776, a Academia foi extinta, mas a partir dessa experiência, a produção da gravura portuguesa passou a ser fortemente influenciada pela iniciativa oficial.

Tal oposição, entre popular e erudito, forjada nos estudos de História da Arte, marcou durante muitos anos os estudos sobre o desenvolvimento da gravura no Brasil, sobretudo no que diz respeito àquela produzida durante o século XIX. Uma dicotomia que extrapolou os campos acadêmicos e influenciou a formação de importantes acervos brasileiros, como o da Biblioteca Nacional, em sua importante seção de iconografia.

Nesse sentido, não por acaso, na maioria dos livros sobre História da Arte no Brasil, praticamente, não há referências sobre a gravura brasileira produzida no século XIX. E o que poderia ser avaliado como arte nessas estampas estaria impregnado do estilo neoclássico, que muito pouco haveria a acrescentar a uma arte nacional. Para Mário Barata, por exemplo, “A Arte brasileira – no campo da pintura, da escultura e da gravura e desenho – vai realizar-se [no século XIX] em nível superficial e dependente de contínuos afluxos estrangeiros, de artistas itinerantes ou imigrados” (BARATA, 1983, p. 412).

Na perspectiva da historiadora da arte Maria Luísa Luz Távora, a gravura, do ponto de vista artístico, somente vai surgir efetivamente no Brasil no século XX, graças à sistematização do ensino de gravura na Escola de Belas Artes, conseguida pela “ação isolada de Carlos Oswald de recuperar o papel da água-forte através da criação de estampas originais, fugindo ao procedimento rotineiro de abordá-la como pura técnica de reprodução” (TÁVORA, 1997, p. 436).

No mesmo sentido, Itajahy Martins (1987, p. 185), apesar de ponderar “que a introdução da gravura em todos os países da América foi uma consequência da arte da impressão, o que nos coloca como ponto inicial de referência no Brasil a Impressão Régia do Rio de Janeiro”, termina por concluir que coube ao gravador Modesto Brocos y Gomes, espanhol que veio jovem para o Brasil, o crédito pelo “início da história do talho-doce no Brasil” (MARTINS, 1987, p. 187), ao lecionar na Escola de Belas Artes a partir de 1890, recaindo no mesmo ponto sobre a gravura “erudita”.

Coube ao gravador Rubem Grilo, curador de uma das maiores mostras de gravura já realizadas no Rio de Janeiro, trazer à tona uma nova perspectiva sobre a produção de gravura do século XIX, quando aponta que, “numa avaliação apressada, considerando o ambiente cultural do período, pressupõe-se que a gravura no Brasil surgiu moderna, sem antecedentes” (GRILO, 1999, p. 16). Grilo considera que a não valorização da gravura produzida nos oitocentos deve-se a uma visão classificatória presente em alguns estudos de História da Arte, que acabam por estabelecer uma hierarquização entre gravuras originais e gravuras de reprodução. Gravura de reprodução, como o próprio nome sugere, são aquelas gravuras que reproduzem uma ideia concebida por outro artista. A gravura “Desembarque da Arquiduquesa Leopoldina”, de Pradier, por exemplo, feita a partir de um quadro de Debret, seria uma gravura de reprodução, por copiar outra. Em uma gravura original, ao contrário, a matriz reproduz a ideia concebida desde o início pelo próprio artista. Félix Émile Taunay gravou uma “Aclamação de D. Pedro I”, obra “original”, já que não é cópia de nenhuma outra.

Grilo desloca a questão da oposição entre popular e erudito, passando a problematizar a diferença entre original – a unicidade da obra de arte, como analisado por Walter Benjamin – e cópia, ou seja, seu caráter de reprodutibilidade. Ao desfazer a tensão entre uma condição ou outra, assumindo tais características como uma condição da gravura, Grilo irá propor que a produção em gravuras anterior ao século XX seja admitida como gravura de reprodução, e, como tal, pertencente a uma “iconografia documental e de comunicação”, enquanto a gravura original, “obra de inscrição autônoma e de finalidade estética”, portadora do adjetivo “artístico”, teria surgido no Brasil apenas no século XX.

Abrindo espaço na exposição para a gravura produzida no século XIX, Grilo justifica a iniciativa chamando a atenção para o fato de que, esse tipo de gravura, “tratando-se de registros colhidos pela observação do real, resulta em significados que têm implicações de ordem estética” (GRILO, 1999, p. 16).

Fora do campo da História da Arte, a discussão em torno da gravura recai, em geral, sobre suas possibilidades enquanto “evidência histórica”, sobretudo para o conjunto de imagens produzido ao longo do século XIX. Seria a imagem gravada passível de se tornar fonte de análise crítica e não mera ilustração, suporte do texto escrito?

Ao fazer um estudo sobre o status do material visual entre disciplinas, como a antropologia, a sociologia e a própria história, Ulpiano Bezerra de Meneses, em seu texto “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares”, chama a atenção para “as vantagens que poderiam beneficiar o conhecimento histórico, se a atenção dos historiadores se deslocasse do campo das fontes visuais para o da visualidade como objeto detentor, ele também, de historicidade e como plataforma estratégica de elevado interesse cognitivo” (MENESES, 2003, p. 11).

Autores como Peter Burke ainda hoje lamentam que muitos historiadores “não consideram a evidência das imagens com seriedade” (BURKE, 2003, p. 12), mesmo após o surgimento de tantas “novas abordagens, novas perspectivas” no campo da história. Apesar do crescente número de trabalhos no campo da fotografia e do cinema, pode-se falar de um corpo conceitual da História da Imagem? 

Ivan Gaskell, em seu artigo “História das imagens”, diz que seu capítulo leva esse nome pela simples razão de que seu desejo é “considerar as questões relacionadas ao material visual além dos limites da arte” (GASKELL, 1992, p. 238), marcando, assim, uma diferença entre a História da Arte e a História Social. Preocupação que também aparece em Burke, no momento em que o autor frisa que seu “ensaio está mais voltado para “imagens” do que para “arte”’ (BURKE, 2003, p. 20).

Como observa Ulpiano de Meneses, no entanto, “a aceitação da imagem como fonte e da natureza social do fenômeno artístico ainda não eliminou, mesmo nos dias de hoje, a busca equivocada e estéril de ‘correlações’ entre uma esfera artística e outra, social [...] o que já induz sempre, em escala variada, a excluir a arte do social e, portanto, do histórico” (MENESES, 2003, p. 28).

Uma possibilidade seria entender as imagens como coisas que participam das relações sociais e, mais que isso, como práticas materiais, uma vez que é “a interação social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, no espaço, nos lugares e circunstâncias sociais, nos agentes que intervêm) determinados atributos para dar existência social (sensorial) a sentidos e valores e fazê-los atuar” (MENESES, 2003, p. 14).

Por suas particularidades, a gravura produzida no século XIX beneficia-se bastante dessa perspectiva, principalmente o material visual da primeira metade do século. Nesse período, antes que a fotografia entrasse com força como meio de representação, era a gravura que respondia por boa parte da produção de retratos, folders, estampas avulsas de paisagem, “estampas de reportagens” e mapas – cuja relevância social também não é devidamente considerada pelos historiadores –, além de uma infinidade de impressos que Orlando da Costa Ferreira convencionou chamar de efêmeros.

Como observa ainda Ulpiano Meneses, com exceção do cinema e da fotografia, boa parte da iconografia está a descoberto, à espera de receber atenção. Uma das razões para a falta de interesse pela gravura dos oitocentos talvez seja o fato dela ter sido – na história da nossa sociedade – logo suplantada pela invenção da fotografia. Mas é preciso atentar para as potencialidades de comunicação da gravura, do seu papel dentro de uma sociedade onde a imagem impressa era uma importante plataforma para se ver e ver o mundo.

Se em termos historiográficos ainda há muito a ser feito, no campo da preservação a situação não é muito diferente. Se a gravura artística moderna e contemporânea encontra espaço nos museus de belas artes e nas galerias, cabe aos arquivos públicos e mesmo privados a guarda e conservação das gravuras ditas “históricas”.

Transformadas em acervos, não só as gravuras, mas todo e qualquer documento de posse de uma instituição de memória, passam a estar sujeitos a uma legislação específica, a Lei Federal nº 8.159, de 08 de janeiro de 1991, conhecida como “Lei de Arquivos”. A esse respeito, como afirma Hilário Pereira Filho, 

O tombamento de acervos documentais não é prática recorrente nas instituições de patrimônio [...]. O ato de se tombar ou atribuir valor à documentação ocorre em situações de promoção para acervos considerados representativos ou em situações de risco iminente de perda dos mesmos (PEREIRA FILHO, 2015).

As questões se sobrepõem: como acervos, as gravuras históricas alcançaram uma valorização no mercado de obras de arte, passando a fazer parte das estatísticas de furtos. Entre 2001 e 2008, uma série de roubos atingiu de forma alarmante diversos acervos públicos do Rio de Janeiro, como o que levou toda a coleção de gravuras de Jean-Baptiste Debret do Arquivo Geral da Cidade, em 2006, entre outros bens; como documentos, elas ainda estão à espera de estudos que possam rever distinções “tidas como evidentes”, como se referiu Roger Chartier, como a que opõe cultura popular e cultura letrada e que marcou profundamente a produção de conhecimento sobre as gravuras; por fim, como todo bem cultural, a gravura depende da apropriação e da circulação social do conhecimento, da valorização das instituições de guarda, bem como de seus funcionários, do aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão da informação e de mecanismos de segurança, para que possam ter o seu devido valor reconhecido.

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Como citar: SANTOS, Renata. Gravura. In: GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. (verbete). ISBN 978-85-7334-299-4.

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Ficha Técnica

Renata Santos Historiadora, mestre e doutora em História Social pela UFRJ. É autora, entre outros trabalhos, de A Imagem Gravada, publicado pela Casa da Palavra em 2008, como parte das comemorações pelos 200 anos da chegada da Corte portuguesa ao Brasil. Atualmente, realiza estágio de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, sobre a relação entre Cultura e Desenvolvimento Sustentável.