Dicionário do Patrimônio Cultural

Estudos Cemiteriais

Verbete

Clarissa Grassi

Ainda que tenha adotado diferentes formas de lidar com a finitude ao longo do tempo, o ser humano continua sendo o único animal que tem necessidade de ocultar o cadáver. Seja pela inumação, cremação ou até práticas de canibalismo, modalidades diversas de enterramento e dispositivos funerários criados revelam e acompanham mudanças significativas em diferentes formas de se lidar com a morte e o morto.

Dos tumulus – formados por montículos de terra próximos às cavernas – às gavetas de concreto pré-fabricadas, foram múltiplas as representações construídas e constituídas em torno da morte, perpassando por momentos de aproximação e afastamento na relação entre vivos e mortos. Isso gerou uma diversidade de indícios que fazem dos locais e das formas de sepultamento repositórios de camadas sobrepostas de um patrimônio cultural baseado nas práticas da morte e dos mortos. Diferentes modalidades e políticas de enterramentos, tipologias tumulares, epitáfios, materiais geológicos, esculturas e adornos tornaram-se elementos de uma cultura material funerária, que, ao serem analisados e interpretados, permitem uma compreensão sobre representações individuais e coletivas de uma dada época.

Os estudos cemiteriais surgem como formas de investigação que tomam locais de sepultamentos enquanto objeto ou fonte de pesquisa. Seja pela análise individual do túmulo ou pela do conjunto, são contempladas as mais variadas formas e configurações de cemitérios, campos santos e necrópoles. Levando-se em conta a progressão conceitual e tipológica dos enterramentos ao longo dos séculos, incluem-se os locais internos e externos de sepultamentos em casas, templos, igrejas, cemitérios de escravos, de indigentes, confessionais ou extramuros, públicos ou privados, em tipologias extramuros, convencional, parque, jardim, vertical, memorial ou crematório.

Partindo de uma visão do cemitério como fonte histórica, Bellomo (2000) aponta várias possibilidades de estudo do tema, como: formação étnica, genealogia, memória familiar e da comunidade, crenças religiosas, ideologia política, gosto artístico, evolução econômica, perspectiva de vida e posição da população em relação à morte.

Dentre as diversas abordagens possíveis nos estudos cemiteriais, estão as dedicadas à arte e à arquitetura tumular (também denominadas funerária ou cemiterial) e as ligadas à história de criação e consolidação dos cemitérios, incluindo aspectos quanto à secularização dos chamados cemitérios extramuros. 

A implantação dos cemitérios no Brasil, ocorrida durante o século XIX, desencadeou diferentes reações junto à população. João José Reis (1991) foi pioneiro ao abordar a revolta da população soteropolitana diante da implantação do Cemitério Campo Santo, na Bahia. Sua pesquisa sobre a Cemiterada, um levante popular contra a obrigatoriedade dos cemitérios, também tratou com profundidade os costumes fúnebres em Salvador. Já a implantação dos cemitérios no Rio de Janeiro foi objeto das pesquisas de Claudia Rodrigues (1997), que analisou as atitudes dos cariocas diante da morte e os desdobramentos da proibição do uso de sepultura eclesiástica em função da ocorrência de graves epidemias na capital do Império.

No Brasil, Clarival do Prado Valladares (1972) é considerado o precursor dos estudos cemiteriais. Entre os anos de 1960 e 1970, dedicou-se a registrar e analisar a arte e a arquitetura tumular de diversas cidades brasileiras, fotografando e tecendo análises sobre a diversidade dos túmulos e seus ornamentos. O resultado foi publicado no livro “Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros”, apontado como o mais abrangente levantamento de arte tumular já realizado.

O ofício dos marmoristas italianos na cidade de Ribeirão Preto/SP, assim como sua produção escultórica entre os anos de 1890 e 1930, foi tema do estudo de Maria Elizia Borges (1991; 2002). Tânia Andrade de Lima (1994) analisou sob o enfoque da arqueologia o processo de implantação dos valores burgueses a partir dos cemitérios oitocentistas no Rio de Janeiro, analisando jazigos e adornos. Ela e Harry Rodrigues Bellomo (1998), que se dedicou a analisar a estatuária fúnebre de Porto Alegre/RS, são considerados pioneiros nos estudos da arte tumular.

O estabelecimento da cultura visual em torno da morte no Rio de Janeiro foi tema do trabalho de Henrique Araújo Batista (2008), que analisou a visualidade da cultura fúnebre por meio da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula e dos túmulos e adornos presentes em seu cemitério, o Catumbi. Marcelina das Graças Almeida (2007) partiu do Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte/MG, estendendo sua análise aos Cemitérios Agramonte e Prado do Repouso, situados na cidade do Porto em Portugal, para propiciar a reflexão sobre os significados incorporados na arte tumular das necrópoles oitocentistas.

Ainda que inicialmente muitos estudos tenham abarcado em uma mesma análise arte e arquitetura tumular, o aprofundamento das temáticas colaborou para que se tornassem linhas independentes de pesquisa. A arquitetura tumular passou a realizar a análise tipológica das construções, assim como seus referenciais arquitetônicos, possibilitando compreender as influências sofridas pelos programas arquitetônicos como o da cidade e das edificações sacras.

Nesse sentido, o arquiteto Renato Cymbalista (2001) produziu um extenso levantamento fotográfico em cemitérios paulistas, buscando a relação entre o estabelecimento das cidades em torno dos primeiros sepultamentos. O autor analisou as diversas formas que os túmulos assumiram ao longo do século XIX até o final do século XX, pontuando morfologias e a monumentalização pela qual esses espaços passaram. A arquitetura tumular como fonte para compreensão dos processos sociais nos cemitérios brasileiros foi tema da pesquisa realizada pelo antropólogo Antonio Motta (2008), que privilegiou os cemitérios oitocentistas como campo de estudo. Investigando as construções de mausoléus como pontos de aglutinamento das famílias e perpetuação do patronímico, o autor abordou sob uma perspectiva socioantropológica as morfologias tumulares.

Para além da monumentalização dos cemitérios ao longo do século XX, temas, como o processo de secularização desses espaços, passaram a ser privilegiados. O trabalho de Claudia Rodrigues (2005), “Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro”, aborda o processo da perda de controle da igreja sobre a morte e a posterior secularização dos cemitérios cariocas. O tema da dessacralização da morte também foi abordado por Alcineia Rodrigues dos Santos (2011), que estudou a relação da população da região do Seridó/RN com a ocorrência de surtos epidêmicos na metade do século XIX. As mudanças nas práticas fúnebres durante as primeiras décadas do século XX, que a Irmandade de São Miguel e Almas, em Porto Alegre/RS, adotou, foram tema do estudo de Mauro Dillmann (2013), que também abordou a busca de distinção social das famílias através da construção de túmulos.

Os cemitérios confessionais também passaram a ser objeto de pesquisas, como o trabalho de Beatriz Kushnir (1996) sobre as mulheres judias, prostituição e o estabelecimento de associações de ajuda mútua, que incluiu a construção do Cemitério de Inhaúma, no Rio de Janeiro. Já Adriane Piovezan (2017) estudou os rituais e procedimentos com os soldados brasileiros mortos em combate durante a Segunda Guerra Mundial. Além de pesquisar o Pelotão de Sepultamento, a autora também abordou a criação de cemitérios militares e monumentos aos mortos.

Tomados como locais de construção de memórias individuais e coletivas, os cemitérios podem ser tidos como resumos simbólicos das sociedades nas quais foram inseridos. Assim, representam um significativo campo para a valorização do patrimônio. O processo de tombamento do Cemitério dos Imigrantes em Joinville/SC foi o ponto inicial para Elisiana Trilha Castro (2008) pesquisar de que forma um cemitério pode se configurar como objeto de políticas do patrimônio cultural. Paula Andréa Caluff Rodrigues (2014) tomou o Cemitério de Nossa Senhora da Soledade, tombado em 1964, em Belém/PA. Sem enterros desde o século XIX, a autora colocou em questão a relação das pessoas com o espaço e os novos usos desse patrimônio.

Com a ampliação e o aprofundamento de pesquisas sobre o tema da morte, dos mortos e do morrer a partir dos anos 2000, foi marcante a multiplicação na produção de dissertações e teses com enfoque nos estudos cemiteriais, envolvendo diferentes áreas do conhecimento como história, arquitetura, artes, sociologia, antropologia, psicologia, geografia, direito, literatura, turismo entre outras. Fundada no ano de 2004, a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, entidade sem fins lucrativos que congrega pesquisadores em torno da temática dos cemitérios enquanto fonte de pesquisa, passou a divulgar os estudos em encontros nacionais realizados a cada dois anos. Em 2010, foi lançado o catálogo “Estudos Cemiteriais no Brasil”, organizado por Maria Elizia Borges, constando a produção acadêmica e bibliográfica produzida até então.

A continuidade e aprofundamento dos estudos cemiteriais vêm desvelando uma gama de possibilidades de pesquisas com as mais variadas abordagens dentro das áreas de conhecimento, reiterando a importância histórica, artística e cultural dos cemitérios. Dentre elas a do turismo cemiterial. A ação de visitação dos cemitérios, além de promover o segmento do turismo cultural e patrimonial, também serve de palco para ações de educação patrimonial, como as executadas em cidades como Belo Horizonte, no Cemitério do Bonfim, por Almeida (2016), e em Curitiba, no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, por Grassi (2014). Por meio da visitação desses espaços, a população é sensibilizada sobre a importância de preservação dos dispositivos funerários, a correlação com a história da cidade, suas personalidades, assim como o potencial enquanto patrimônio histórico, artístico e cultural.

Fontes Consultadas:
ALMEIDA, Marcelina das Graças de. A cidade e o cemitério: uma experiência em educação patrimonial. Revista M. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 217-234, jan.-jun. 2016.
______. Morte, cultura, memória. Múltiplas interseções: uma interpretação acerca dos cemitérios oitocentistas situados na cidade do Porto e Belo Horizonte. 2007. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
BATISTA, Henrique Sérgio de Araújo. Jardim regado com lágrimas de saudade: Morte e cultura visual na Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula (Século XIX). 2008. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: Ed. da PUCRS, 2000.
______. A estatuária funerária em Porto Alegre (1900-1950). 1998. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998.
BORGES, Maria Elizia. A arte funerária no Brasil (1890-1930) ofício de marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Belo Horizonte: Editora C/ Arte, 2002.
______. Arte Tumular: a produção dos marmoristas de Ribeirão Preto no período da Primeira República. 1991. Tese (Doutorado em Artes) – Programa de Pós-graduação em Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.
______; SANTOS, Alcineia Rodrigues dos; GOMES, Laryssa Tavares Silva Gomes. Estudos Cemiteriais no Brasil: catálogo de livros, teses, dissertações e artigos. Goiânia: UFG, FAV, Ciar, Funape. 2010.
CASTRO, Elisiana Trilha. Aqui também jaz um patrimônio: identidade, memória e preservação patrimonial a partir do tombamento de um cemitério (o caso do Cemitério do Imigrante de Joinville/SC, 1962-2008). 2008. Dissertação (Mestrado) – Centro Tecnológico, PGAU-CIDADE, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
CYMBALISTA, Renato. Cidade dos vivos – arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do estado de São Paulo. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002.
DILLMANN, Mauro. Morte e práticas fúnebres na secularizada República: a Irmandade e o Cemitério de São Miguel e Almas de Porto Alegre na primeira metade do século XX. 2013. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2013.
GRASSI, Clarissa. Cidade dos mortos, necrópole dos vivos: a Curitiba do Cemitério Municipal São Francisco de Paula. 2016. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016.
______. Guia de Visitação ao Cemitério Municipal São Francisco de Paula: arte e memória no espaço urbano. Curitiba: Clarissa Grassi, 2014.
KUSHNIR, Beatriz. Baile de máscaras: mulheres judias e prostituição: as Polacas e suas Associações de Ajuda Mútua. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.
LIMA, Tânia Andrade. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX (estudo de identidade e mobilidade sociais). Anais do Museu Paulista, São Paulo, Nova Série, v. 2, jan.-dez. 1994.
MOTTA, Antonio. À flor da pedra: formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Ed. Massangana, 2008.
PIOVEZAN, Adriane. Morrer na guerra: a sociedade diante da morte em combate. Curitiba: Editora CRV, 2017.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RODRIGUES, Cláudia. Nas fronteiras do além: a secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
______. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1997.
RODRIGUES, Paula Andréa Caluff. Duas faces da morte: o corpo e a alma do Cemitério Nossa Senhora da Soledade, em Belém/PA. 2014. Dissertação (Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural) – IPHAN, Rio de Janeiro, 2014.
SANTOS, Alcineia Rodrigues dos. O processo de dessacralização da morte e a instalação de cemitérios no Seridó, séculos XIX e XX. 2011. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de História, 2011.
VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e sociedade nos cemitérios brasileiros. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura-MEC, 1972.


Como citar: GRASSI, Clarissa. Estudos cemiteriais. In: GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. (verbete). ISBN 978-85-7334-299-4

Enviado por

.

Link de fórum de discussão

.

Ficha Técnica

Clarissa Grassi Mestre em Sociologia (PGSOCIO-Universidade Federal do Paraná - UFPR), presidente da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), integra os grupos de pesquisa do CNPq Imagens da Morte: a morte, os mortos e o morrer no mundo Ibero-americano (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO), Imagem e Conhecimento (UFPR) e Núcleo de Estudos do Paraná (UFPR). Especializada em pesquisas sobre arte e arquitetura tumular.