Dicionário do Patrimônio Cultural
Relíquia
Verbete
Rafael Zamorano Bezerra
Considera-se relíquia qualquer objeto que teve contato com algum personagem religioso, histórico, mítico ou de um passado longínquo, podendo ser o próprio corpo ou seus restos mortais, objetos pessoais ou até mesmo aqueles que “testemunharam” determinado acontecimento religioso ou histórico. Sua sacralidade ou aura manifesta-se, também, por contágio, de tal modo que um objeto comum ao entrar em contato com o objeto relíquia pode ser alçado ao estatuto de relíquia. Foi o cristianismo que, ao difundir o culto dos santos, levou as relíquias ao seu apogeu durante a Idade Média. Porém, o culto das relíquias está presente nas práticas modernas e contemporâneas do colecionismo, em especial na valoração e exposição dos chamados objetos históricos, comumente referidos em catálogos e discursos produzidos por museus de história como relíquias histórias ou relíquias da nação.
No vocabulário religioso, relíquia é um remanescente de um corpo santo, seja o cadáver inteiro ou partes ou, ainda, objetos que tiveram contato com ele (FRANCO JÚNIOR, 2010). O objeto relíquia, mesmo que seja um fragmento, carrega consigo “aquilo que resta”, ou seja, presentifica determinado passado, herói, santo ou deus, tornando-o vivo, visível e palpável. Santo Agostinho distinguia as relíquias e seus espaços e guarda de acordo com a relação que os fiéis tinham com elas: as relíquias de Cristo são adoradas e as dos santos veneradas, sendo construídos templos para abrigá-las; para os mártires são construídos monumentos funerários, ou seja, espaços destinados ao culto de sua memória, prática que remonta à tradição greco-romana de culto dos heróis, onde se acreditava que mesmo após a morte eles continuavam a agir sobre a vida das pessoas (FRANCO JÚNIOR, 2010).
A relíquia atua no discurso religioso e histórico como uma metonímia, que é o uso de uma palavra fora do seu contexto semântico normal, “por ter uma significação que tenha relação objetiva, de contiguidade, material ou conceitual com o elemento que se refere” (HOUAISS, 2009, p. 1284) Assim, a cruz – relíquia mais sagrada da cristandade – remete a Cristo por metonímia, como se sua presença fosse o próprio Cristo (FRANCO JUNIOR, 2010). De maneira semelhante, um objeto considerado relíquia histórica, como uma bala ou arma da Segunda Guerra Mundial, remete diretamente a um acontecimento histórico, sendo sua presença capaz evocá-lo e torná-lo presente aos seus expectadores.
As relíquias mais sagradas e valiosas durante a Idade Média eram aquelas vinculadas ao martírio de Cristo (POMIAN, 1983). Uma das mais importantes relíquias da Europa foi a Coroa de Espinhos, que se acredita ser a que foi posta na cabeça de Jesus Cristo durante a paixão. Atualmente, a Coroa de Espinhos está guardada na catedral de Notre-Dame, mas originalmente ficava na Sainte-Chapelle (MACGREGOR, 2013), ambas em Paris. A primeira menção a essa coroa como relíquia data por volta do ano 400, em Jerusalém, sendo, mais tarde, levada para Constantinopla, capital cristã do Império Romano no Oriente, onde foi mantida e venerada durante séculos. Em 1200, foi penhorada com os venezianos por uma soma gigantesca. O rei da França, Luís IX, que era um ávido colecionador de relíquias e extremado devoto do cristianismo, sabendo que a relíquia se encontrava com os venezianos, comprou-a desses, levando-a para a França, onde mandou construir a Sainte-Chapelle para abrigá-la. De acordo com Neil MacGregor (2013), a construção da Sainte-Chapelle custou 40 mil libras francesas, a coroa de espinhos teria custado o triplo, sendo, possivelmente, o objeto mais valioso da Europa. Para Benedicta Ward, no contexto dos anos 1200, uma relíquia particularmente ligada à paixão de Cristo era a melhor coisa que se poderia possuir e o ato de Luís IX teve, para além das questões de devoção, uma grande força política. Sua coleção de relíquias contribuiu para reforçar a posição da França na cristandade ocidental em uma época em que países, cidades e governantes competiam pela posse de relíquias sagradas. Há nesse ato uma ação estratégica: o estabelecimento de Paris como a nova Jerusalém dos textos bíblicos (apud MACGREGOR, 2013).
As relíquias eram usadas como “presentes”, cujo principal propósito era a manutenção de laços de amizade e sociabilidade entre bispos e nobres durante a Idade Média. Esse intenso intercâmbio tem relação com a necessidade de validação das relíquias. Muitas delas eram compostas por pequenos fragmentos de ossos atribuídos aos santos; pedaços de roupas, cabelos. O que garantia sua autenticidade era a proveniência ou a história que as acompanhavam (HAHN, 2010). É o caso de Paulino de Nola, um dos principais padres da cristandade, que ao enviar um pequeno pedaço da Cruz de Cristo para a Nova Basílica de Primuliacum, enviou também uma carta usada como inscrição da relíquia:
The revered altar conceals a sacred union, for martyrs lie there with the holy cross. The entire martyrdom of the saving Christ is here assembled – a cross, body, and blood of the Martyr, God himself... where the cross is, there too, is the Martyr; for the Martyr’s cross is the holy reason for the martyrdom of the saints (HAHN, 2010, p. 297).
[O referenciado altar oculta a sagrada união, pois o mártir foi nele sepultado com a Santa Cruz. Todo o martírio da salvação de Cristo está aqui reunido – a cruz, o corpo e o sangue do mártir, Deus em pessoa... onde a Cruz está estará, ali também, o mártir; pois a cruz do mártir é a santa razão para o martírio dos santos. (Tradução livre do autor)].
Observa-se que as relíquias cristãs eram valoradas através das cartas ou pequenos bilhetes escritos por pessoas com autoridade religiosa, como Paulino de Nola. Tal prática pode ser também observada nas relíquias históricas e familiares, que eram usualmente dadas como presentes a membros de uma mesma família, a pessoas próximas ou ligadas por laços políticos. Esses presentes são autenticados por dispositivos semelhantes e podem ser observados em coleções de importantes museus, como o Museu Histórico Nacional, o Museu Nacional e o Museu Histórico Nacional da República Argentina. No caso do Museu Histórico Nacional, observa-se que muitas doações de objetos familiares realizadas entre as décadas de 1920 e 1960 são oriundas de membros das elites nacionais, como familiares de oficiais veteranos da Guerra do Paraguai, que enxergam os antigos donos desses objetos como indivíduos naturalmente pertencentes à história nacional, devido a seus vínculos com o estado e a guerra (BEZERRA, 2014). Esses objetos vinham acompanhados de cartas ou bilhetes de parentes ou autoridades certificando sua autenticidade. Caso emblemático, é o da doação realizada ao Museu Histórico Nacional, em 1924, de uma espada do general Deodoro da Fonseca, onde se pode ler a seguinte declaração:
Espada do Generalíssimo Deodoro - O dr. João Severiano da Fonseca certifica que a espada de 2º uniforme de Oficial General, que ofertei a meu primo o Coronel Pedro Paulo da Fonseca Galvão, “é a mesma que foi de uso do meu irmão o Generalíssimo Deodoro, até o fim da sua vida. 31 de agosto de 1897” [Assinado por João Severiano da Fonseca com firma reconhecida] (apud BEZERRA, 2014, p. 88).
Essa prática de autenticação, marcada pela consanguinidade e elementos de autoridade, aponta para dispositivos comuns na autenticação das relíquias cristãs, nos quais a autoridade religiosa ou política de quem oferta o objeto atua como certificador de autenticidade. Outro elemento observável é o caráter de sacrifício presente no ato da doação. Muitos objetos doados aos museus são valiosas obras de arte, joias, condecorações, mobiliário nobre, enfim, objetos que foram agregados a algum tipo de valor monetário, histórico ou sentimental. As doações são interpretadas como atos de patriotismo, como dádivas ofertadas por aqueles que abrem mão desses tesouros para oferecê-los à nação e às gerações vindouras. É um ato de sacrifício que fazem no presente em prol do futuro. Nesse contexto doar relíquias ao Estado, assim como à Igreja, é uma prática privilegiada para a consagração e a perpetuação de indivíduos na história nacional ou uma forma de alcançar o reconhecimento público da fé, ou ainda alguma graça divina. Nesse aspecto, as relíquias permitem inserir seus doadores no panteão da nação e nos espaços sagrados, pois ao serem expostas afirmam a generosidade, patriotismo e a fé dos doadores, publicizada com a colocação de legendas ou placas em agradecimento às doações.
Na percepção de Pomian (1983), as coleções particulares vêm desconectando-se da esfera do sagrado: as relíquias dos santos e os objetos feitos de materiais preciosos que remetem ao universo religioso estão sendo substituídas progressivamente pelas obras que apontam para ações de autores humanos. Nesse sentido, é emblemático o mercado de antiguidades de objetos vinculados a grandes conflitos do século XX, como à Primeira e à Segunda Guerra; a ídolos da cultura pop, como Elvis Presley, Michael Jackson; e a antiguidades tecnológicas, como LPs antigos, câmeras fotográficas, consoles de games entre outros objetos de produção em massa, comumente chamados de relíquias em sites de compra e venda online.
A consagração das relíquias efetua-se com a sua exposição ao público, por isso precisam ser preparadas para a exibição, dentro de vitrines, com iluminação e legendas. No caso das relíquias cristãs, os relicários assumem a função de guardá-las e expô-las em compartimentos feitos de ouro, pedras preciosas, acompanhadas de etiquetas com explicações sobre sua origem e seu significado. No caso dos museus, é a museografia que assume a gerência dos diferentes usos museológicos desses objetos, a partir da publicação em catálogos, conservação, classificação, produção de legendas, e a exposição. Por fim, são as autoridades envolvidas em sua autenticação e a atenção do público que as visitam que legitimam a invenção e a existência das relíquias.
Fontes Consultadas:
BEZERRA, Rafael Zamorano. A invenção das relíquias. Dispositivos de autoridade e musealização de objetos no Museu Histórico Nacional (1922-2012). Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ, Rio de Janeiro, 2014.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. Relíquia, metonímia do sagrado. Historiae, Rio Grande, v. 1, n. 1, p. 9-29, 2010. Disponível em: <https://www.seer.furg.br/hist/article/view/2350/1232>. Acesso em: 18 nov. 2016.
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Vendo o passado: representação e escrita da história. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 11-30, dez. 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.phpscript=sci_arttext&pid=S010147142007000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 06 fev. 2017.
HAHN, Cynthia. What do the reliquaries do for relics? Numen, n. 57, p. 284-316, 2010. Disponível em: <http://spectrum.huji.ac.il/PDF/Hahn_what%20do%20reliquaries%20do%20for%20relics.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2012.
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1224. Verbete: metonímia.
MACGREGOR, Neil. Relicário do Santo Espinho. In: ______. A história do mundo em 100 objetos. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.
POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: ROMANO, Rugiero (Org.). Enciclopédia Einaudi (vol. 1 – Memória/história). Lisboa: Casa da Moeda/ Imprensa Nacional, 1983.
______. Des saintes reliques à l'art moderne: Venise-Chicago XIII-XX siècle. Paris: Gallimard, 2003.
Como citar: BEZERRA, Rafael Zamorano. Relíquia. In: GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. (verbete). ISBN 978-85-7334-299-4
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Ficha Técnica
Rafael Zamorano Bezerra Historiador, doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Responsável pelo departamento de pesquisa do Museu Histórico Nacional.