Embarcações tradicionais recebem o reconhecimento como bens do patrimônio cultural do país

O Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural aprovou no dia 10 de dezembro de 2010 a proposta de tombamento de parte do Patrimônio Naval Brasileiro elaborada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A partir da decisão, tornaram-se protegidos o acervo do Museu Nacional do Mar, na cidade de São Francisco do Sul (SC), a Canoa de Tolda Luzitânia, da Sociedade Sócio-Ambiental do Baixo São Francisco (SE), a Canoa Costeira de nome Dinamar, da Baía de São Marcos (MA), o Saveiro de Vela de Içar de nome Sombra da Luz, do Recôncavo Baiano (BA), e a Canoa de Pranchão do Rio Grande, de nome Tradição (RS). 

Trata-se dos últimos exemplares de embarcações que faziam parte da rotina do país, seja na pesca ou no comércio e do transporte de pessoas e mercadorias. Antigamente, numerosas e corriqueiras, hoje são alguns exemplares que, graças à dedicação voluntária de pessoas e organizações, são capazes de registrar os chamados bons tempos da navegação no Brasil. Atualmente, essas embarcações, apesar de frágeis, ainda guardam excpecionalidades tipológicas e construtivas, além de forte significado simbólico e afetivo local; fazem parte das paisagens e são, muitas vezes, ícones importantes da cultura regional.

De acordo com o Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização – Depam/Iphan, há 20 anos a proteção de barcos ou tipologias de embarcações tradicionais é realizada como política de preservação do patrimônio cultural em vários países, especialmente na Europa. A proteção de barcos históricos e embarcações tradicionais é comum em Portugal, Espanha, França, Itália Inglaterra, historicamente ligados à navegação. 

Na França, por exemplo, são 110 as embarcações tombadas como monumentos históricos nacionais, entre barcos de pesca, de lazer, de passageiros, de combate, de comércio e transporte de mercadorias e também embarcações científicas. Outro exemplo são as famosas gôndolas de Veneza, do século XI, e que ainda hoje fazem parte da paisagem e da cultura da cidade italiana. 

O Brasil, apesar de sua riqueza e diversidade de embarcações, ainda não dispunha de nenhum exemplar sob proteção federal. Somente agora o país desperta para a importância que tem o seu patrimônio naval e a necessidade de conservá-lo para as gerações futuras. 

Os processos de tombamento de embarcações tradicionais no Brasil
Em 2008, o Iphan lançou o projeto Barcos do Brasil cujo objetivo central é a preservação e a valorização do patrimônio naval brasileiro por meio de ações de proteção de embarcações, paisagens e acervos históricos e fomento às atividades relacionadas com os barcos tradicionais – pesca, culinária, artesanato, festejos, transporte de pessoas e mercadorias e outras manifestações. Os parceiros institucionais são os ministérios da Pesca e Aquicultura, do Meio Ambiente, da Ciência e Tecnologia, das Cidades, da Educação, do Turismo, da Defesa, a Secretaria Especial de Portos e a Representação da UNESCO no Brasil.

A partir da identificação de localidades e embarcações singulares, muitas vezes em risco de desaparecimento ou em contextos vulneráveis, o Iphan busca estimular o monitoramento de alguns barcos tradicionais, com o intuito de acompanhar a evolução de sua utilização econômica, seu estado de conservação e preservação e evitar seu desaparecimento. 

Como resultado do inventário de varredura do patrimônio naval e dos cadastramentos e diagnósticos quantitativos e qualitativos das embarcações e dos contextos navais de maior relevância e de maior vulnerabilidade, realizado pelo projeto Barcos do Brasil, o Iphan apresentou os primeiros processos de tombamentos de embarcações tradicionais brasileiras.

A Canoa de Tolda Luzitânia - SE
A Luzitânia é um dos três últimos exemplares das canoas de tolda do Rio São Francisco. Adquirida, em 1999 pela Sociedade Sócio-Ambiental do Baixo São Francisco, a canoa foi completamente restaurada e voltou a navegar. Apesar de a restauração da embarcação apresentar materiais diversos do original, de acordo com parecer do Depam/Iphan, para quem a vê navegando no São Francisco, para a população da região, a sua forma continua repleta de significados.

A canoa de tolda é o maior símbolo do Rio São Francisco e só existe no Brasil. As toldas originais eram grandes embarcações, mas a brasileira possui somente 16 metros de casco. É perfeitamente adaptada para descer o rio, a favor do vento, com o pano aberto. É composta de leme, tábua de bolina, moitão e a tolda que servia para abrigo da alimentação e dos canoeiros. 

A Luzitânia, que na época do cangaço se chamava Rio Branco, teve grande importância econômica no transporte de mercadorias em toda a região do Baixo São Francisco.

O Saveiro de Vela de Içar Sombra da Lua - BA
O saveiro certamente é a embarcação mais conhecida no contexto do patrimônio naval. Embarcação típica baiana, cantada e declamada, na poesia de Jorge Amado, na música de Dorival Caymmi, retratado nas fotografias de Pierre Verger, nas pinturas de Carybé. 

O pedido de tombamento do saveiro Sombra da Lua foi feito em 20 de outubro de 2010, mesmo dia em que o Iphan concedeu à Associação Viva Saveiro o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, por sua atuação em prol da preservação dos últimos saveiros da Bahia. 

O Sombra de Lua é um dos últimos saveiros que preservam, na íntegra, as características originais de um saveiro de vela de içar de um mastro. Com tijupá e popa torada, possui 12,5 metros de comprimento por 4 de largura. De acordo com a Associação Viva Saveiro, foi construído pelo carpinteiro naval José Simão provavelmente em 1923.

Em 2006, a embarcação pertencia a Mestre Bartô, que estava com grandes dificuldades em mantê-la. A Associação comprou o saveiro, realizou a completa restauração e o devolveu ao Mestre. Atualmente, o Sombra da Lua tem como abrigo principal o Porto da Pedra, em Maragogipe, e é o único saveiro que ainda atraca na rampa do Mercado Modelo, levando produtos do Recôncavo Baiano para Salvador. Atraca também na Feira de São Joaquim de onde traz carregamento de cerâmica e caxixi de Maragogipinho para Salvador. 

Por seus valores históricos, artísticos e etnográficos, o Iphan propôs o tombamento do Saveiro Sombra da Lua que, ao se tornar o primeiro e único exemplar protegido de embarcação desta tipologia, passa a representar todos os últimos saveiros da Bahia.

A Canoa Costeira Dinamar - MA
Com a realização de inventários do patrimônio naval de vários estados, tendo em vista a excepcionalidade das embarcações e também de risco de desaparecimento, o Iphan vem obtendo dados detalhados sobre algumas tipologias de barcos tradicionais e suas condições atuais de subsistência. No Maranhão, com a contribuição do Estaleiro Escola, foram identificados e cadastrados, em 2009, 21 das últimas canoas costeiras em atividade na Baía de São Marcos. 

A pesquisa estima que existam entre 30 e 40 canoas em atividade, sendo 27 em melhor estado de preservação. Uma delas é a canoa costeira Dinamar. A partir de ação contratada pelo Iphan e com recursos do Ministério da Pesca e Aquicultura, o Estaleiro Escola do Maranhão restaurou a canoa costeira Dinamar, escolhida entre as cadastradas em função do estado precário de conservação e das poucas condições econômicas do proprietário. Assim como no caso baiano, a proposta de tombamento da primeira canoa costeira visou contribuir para sua preservação e valorização.

Os cúteres ou canoas costeiras são um dos maiores barcos tradicionais do Brasil. O convés é fechado, arrematado por cabine rasa. Na proa há um alongado gurupés (pau de giba) e a bita (frade), que usualmente apresenta forma de cabeça humana. O formato da vela, com cores vivas, é dado pela forte inclinação da carangueja, que, visualmente, converte sua forma quadrada em triangular. Quando navegam, essas embarcações impressionam: inclinam-se suavemente com o vento, enquanto colorem a Baía de São Marcos com as diferentes tonalidades de seus cascos e velas. 

Ainda hoje é possível encontrar exemplares que possuem o fundo do casco constituído por uma peça única, acrescida de outras tábuas que dão a forma final ao modelo, porém esta prática foi abolida por escassez de árvores, junto à costa, de tamanho e qualidade adequados.

A Canoa de Pranchão Tradição - RS
Estudos do Complexo de Museus da Universidade Federal do Rio Grande – FURG reconhecem a canoa de pranchão como o único modelo de embarcação tradicional propriamente desenvolvido no Rio Grande. Seu casco era construído com 48 a 50 pranchões de cedro, falquejados a enxó e fixados simetricamente uns aos outros com pregos e cavilhas sobre um esparso cavername com 3 cavernas mestras. As pranchas eram recortadas e armadas como em um quebra-cabeça, para garantir a vedação entre as diversas partes que formavam a canoa.

Podiam ter uma, duas ou três velas – o foque, o traquete e a mezena – tingidas com a tintura roxa extraída da casca da capororoca, uma pequena árvore típica da região do estuário. As velas eram conhecidas como “pano poveiro” e chegaram ao Rio Grande no final do século XIX, se integrou à paisagem local, adaptadas por pescadores portugueses às necessidades da navegação no estuário da Lagoa dos Patos.

Nas décadas de 1930 e 1940, alguns patrões experimentaram adaptar motores de popa em suas canoas, iniciando um processo de mudança sociocultural. Assim como as outras embarcações em processo de proteção, a canoa de pranchão sobrevive a partir de ação institucional forte e eficaz, que garantiu a sobrevivência das últimas quatro centenárias canoas de pranchão de Rio Grande, todas de propriedade do Museu Náutico e restauradas pelo construtor naval José Vernetti: três navegando e uma em exposição no seco. 

A canoa Tradição foi construída em 1885 e possui com 9,3 metros de comprimento. É um exemplar entre menos de uma dezena de remanescentes das mais de 500 embarcações que navegavam em meados do século XIX. A partir do tombamento, a Tradição passa a representá-las no rol das embarcações tradicionais brasileiras protegidas pelo Iphan. 

Museu Nacional do Mar - SC
Os primeiros tombamentos do patrimônio naval brasileiro também coincidem com contextos em que já existe alguma iniciativa em prol da preservação das embarcações. Assim, nesta primeira etapa, o Iphan incluiu também a proposta de proteção federal para o Museu Nacional do Mar, na cidade de São Francisco do Sul, em Santa Catarina, por seu valor e importância na preservação da memória do patrimônio naval e da cultura marinha e ribeirinha brasileira como um todo.

O Museu Nacional do Mar, fundado em 1992, confunde-se com sua própria história. A ideia foi de montar em São Francisco do Sul, nos antigos galpões da Companhia Hoepcke de navegação, um museu que pudesse reunir a história do patrimônio naval brasileiro, preservando-o para gerações futuras e inserindo-o como fator de valorização dos contextos navais tradicionais do Brasil. 

O Museu Nacional do Mar passou a ser um fator de requalificação urbana de São Francisco do Sul, praticamente um valor agregado da cidade histórica tombada pelo Iphan em meados da década de 1980 e que enfrentava uma grave crise econômica. A partir de 2003, com investimentos do Programa Monumenta, o Museu foi ampliado com a compra da porção que faltava dos galpões da Hoepcke. 

Novos itens foram incorporados ao acervo, que já se constituía em uma excepcionalidade no contexto nacional e latino-americano. O acervo do Museu Nacional do Mar é composto hoje, por 81 embarcações em tamanho natural, 104 modelos navais, 102 peças de artesanato, três maquetes diorama, oito equipamentos e acervo documental e bibliográfico da Biblioteca Kelvin Duarte, formada por mais de dois mil volumes, incluindo obras raras, fotografias, desenhos, cartas náuticas, manuscritos, croquis e outros registros inéditos sobre o patrimônio naval brasileiro e do mundo.

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