Proposta para a composição do Dicionário

Analucia Thompson 

Propor um formato para uma obra que tem por objetivo ser explicitamente coletiva é um desafio que deve ser enfrentado, seguindo duas preocupações: realizar a proposição e apresentá-la de forma suficientemente provocadora para que seja debatida e gere frutos. Nesse sentido, este texto visa expor os resultados dos debates travados coletivamente pela equipe da Coordenação-Geral de Pesquisa, Documentação e Referência (Copedoc) que ficou responsável pela organização do Dicionário IPHAN do Patrimônio Cultural; debates estes orientados para o desenvolvimento desta obra em um contexto que estimule um processo criativo, apoiado em amplas manifestações das reflexões, das pesquisas, das experiências de diversos autores. Outro ponto importante a ressaltar é que encaramos o Dicionário como uma obra permanente, que não se esgota em uma empreitada, mas que acompanha o pensar, as práticas da instituição e do campo do patrimônio cultural, mantendo-se constantemente atualizada.

Fruto da inspiração dos chamados dicionários temáticos, semelhantes em alguns pontos às enciclopédias , o formato proposto para o Dicionário, nesta etapa inicial, apresenta-se dividido em quatro partes.

A parte introdutória desta obra é composta por três artigos, nos quais são discutidos alguns temas, cujos objetivos principais são: expor o histórico da constituição do projeto Dicionário IPHAN do Patrimônio Cultural; explicitar o entendimento teórico sobre o trabalho com conceitos; apresentar a justificativa metodológica para o formato escolhido.

A segunda parte está destinada à elaboração de artigos referentes a doze termos do campo do patrimônio cultural, considerados conceitos fundamentais ou termos-chave. Ela pode ser encarada como a parte enciclopédica do Dicionário.

Na terceira parte são apresentados os verbetes, ou seja, termos considerados não menos importantes, mas que estão submetidos aos conceitos fundamentais e que na continuidade da obra poderão vir a se tornarem artigos que aprofundem sua história e seus significados. Correspondem à parte dicionarizada da obra, na qual prevalece a busca da definição imediata da palavra usada no campo do patrimônio. A lista dos verbetes deve ser entendida como permanentemente aberta a novos termos, que são constantemente introduzidos no campo do patrimônio cultural, como também à recuperação de termos em desuso, mas que foram referenciais na história patrimonial.

1.    Primeira parte: Introdução

Como já nos referimos, a primeira parte do Dicionário foi pensada como uma introdução à obra como um todo. A proposta é, nesse sentido, direcionada para a apresentação de textos que tenham como foco a própria obra. Propomos, então, que essa parte se constitua como um espaço dinâmico, que atraia reflexões que tenham como objetivo problematizar o próprio desenvolvimento da escrita do Dicionário. Assim, podemos considerar a Introdução como o espaço do ‘metadicionário’, no qual sua história, as propostas teóricas e metodológicas para seu desenrolar, os formatos que lhe possam ser mais adequados e a história da instituição à qual ele se refere sejam constantemente repensadas.

2.    Segunda parte: Termos-chave

A proposição relativa à elaboração de artigos sobre termos selecionados a priori necessita de uma explicação mais pormenorizada. 

Em primeiro lugar, a opção por artigos sobre termos-chave foi resultado dos debates internos que se pautaram pela preocupação em estimular a participação ampla na escrita do Dicionário, pela busca de um formato que fosse mais estimulante para os participantes, ou seja, que criasse condições para o desenvolvimento analítico de concepções sobre o assunto em questão, e que, dado o caráter permanente da obra e a intenção de que os termos-chave devam ser progressivamente ampliados, concedesse à obra um dinamismo crescente. Devemos lembrar que, paralelamente a esses artigos, a obra também se desenvolve de forma constante nos verbetes.

A seleção dos doze termos-chave foi resultado de um processo no qual era necessário, em primeiro lugar, definir o que são considerados conceitos fundamentais para então chegar a um conjunto de termos que pudesse corresponder a essa definição, como também ter elementos que justificassem a escolha desse formato e não de outro. 

Partimos então em busca da seleção de termos-chave que sintetizassem o campo do patrimônio cultural experimentado pelo IPHAN. Definimos, assim, cinco critérios que deveriam nortear a compreensão desse campo: sua realidade concreta – o patrimônio cultural; a finalidade de suas ações – a proteção dos bens culturais; o espaço de sua ação legal – a gestão da preservação do patrimônio cultural; o campo teórico ao qual está filiado – o patrimônio cultural; e o processo total no qual está inserido – a patrimonialização.

A partir da definição desses critérios, pudemos perceber que certos termos arrolados na nominata, organizada com cerca de 900 palavras , funcionam como termos-chave; ou seja, apresentam a capacidade de agregar uma série de outras referências, resumindo seu significado geral.

Deste modo: patrimônio é a realidade concreta, cuja gestão prática está associada à preservação de determinados bens que ocorre a partir de instrumentos específicos de proteção – tombamento, registro, chancela, entorno, cadastro, inventários –; bens que são selecionados segundo determinados critérios, que se referem a atribuições de valor, e segundo determinados processos, que envolvem o campo teórico do patrimônio cultural, onde ocorrem as pesquisas. Todo esse procedimento, denominado patrimonialização, deve ser comunicado socialmente por meio de processos de promoção.

Esses termos assinalados em negrito foram considerados os termos-chave. Não se quer dizer que não haja outros termos nessas condições, mas assumimos que esses têm potencialidade de arrolar os termos que compõem a nominata estabelecida. Nesse sentido, a pertinência dessa seleção está em articular em torno de poucos termos todo um imenso vocabulário técnico produzido dentro da instituição ao longo de sua história.

Outra explicação é necessária. O termo chancela foi substituído por paisagem, pois consideramos que este último apresenta mais possibilidades analíticas do que o primeiro, permitindo traçar uma trajetória de proteção que se inicia pelo Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e chega à chancela.

A seguir, apresentamos esses conceitos com algumas observações, cujo objetivo é estimular o debate inicial. 

BEM:
Este termo é usado no campo do patrimônio cultural com o sentido principal de designar os objetos que se encontram em processo de proteção legal ou os que já receberam essa proteção. Tendo sido, inicialmente no Decreto-lei 25/37, associado a termos como ‘coisa’, ‘obras’, ‘objeto’, o termo no plural, bens, designa o conjunto que integra o patrimônio histórico e artístico nacional. Dessa forma, recebe diversas adjetivações, tais como: material, imaterial, imóvel, móvel, tangível, intangível, integrado. Remete também para as designações de tombamento e de registro: centro histórico, formas de expressão, sítio paisagístico, sítio arqueológico, dentre vários.

CADASTRO:
Ao considerarmos o cadastro como um termo-chave na história do patrimônio cultural no Brasil, entendemos que se trata de um instrumento específico de proteção aos bens arqueológicos. Nesse sentido, é um conceito que se refere ao tratamento dispensado a esses bens na política oficial para o patrimônio cultural. Remete, portanto, não somente às ações voltadas para a proteção dos sítios arqueológicos, como também às diversas concepções sobre esses bens presentes na instituição ao longo de sua história.

ENTORNO:
Este termo passou a ser utilizado na década de 1980, substituindo palavras como vizinhança e ambiência do bem tombado – termos já assinalados no Decreto-lei nº 25 de 1937. Apesar de designar um espaço subordinado ao bem tombado, ao longo da história da política de preservação do patrimônio cultural, constituiu-se em um importante instrumento de proteção complementar. As concepções sobre sua abrangência, sua importância e seu significado foram ampliadas, da mesma forma que aquelas relativas ao patrimônio histórico e artístico. Em algumas situações, as delimitações de entorno chegaram a competir com as políticas públicas voltadas para o planejamento urbano.

INVENTÁRIO:
O termo inventário está associado ao termo patrimônio em seu primeiro sentido, como uma descrição detalhada de bens patrimoniais. Na trajetória da instituição, o conceito de inventário pode ser considerado chave, não somente porque remete ao necessário trabalho de identificação e seleção dos bens passíveis de proteção, mas porque permite a gestão da sua preservação, uma vez que, idealmente, manter atualizados os dados sobre os bens protegidos é condição para o desenvolvimento das ações de preservação e de promoção do patrimônio cultural. Além disso, embora não regulamentado, o instrumento do inventário mencionado na Constituição de 1988 pode também se remeter a uma fase necessária do trabalho de preservação de bens culturais e ser encarado como uma forma de proteção.
Os diversos tipos de inventário adotados ou concebidos pela instituição refletem também as variadas concepções nela presentes sobre os objetivos e os significados da proteção aos bens culturais.

PAISAGEM:
O termo paisagem apareceu na história da instituição desde seu começo, quando o Decreto-lei nº 25 de 1937 criou o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e, no segundo parágrafo do artigo primeiro, a definição de monumentos naturais. E, mesmo antes, no Anteprojeto escrito por Mario de Andrade, no qual o autor fez referência ao que entendia por paisagem.
Do tombamento de jardins, de conjuntos urbanos, de áreas panorâmicas, ao instrumento da chancela da paisagem cultural brasileira, constituído em 2009 pela Portaria nº 127, a paisagem ou o valor paisagístico se constitui em um conceito presente na história da instituição. 

PATRIMÔNIO CULTURAL:
Este é um termo que se confunde com a própria instituição: o Patrimônio, como sinônimo de Iphan, e o patrimônio cultural como o campo por excelência de atuação institucional. É um termo que, quando associado ao adjetivo “cultural”, é considerado também como campo teórico, ou seja, objeto de teorização e generalização da natureza, das funções, das propriedades, do processo de disciplinarização, dos métodos do patrimônio cultural. Assim, patrimônio se confunde com a instituição; é o campo de atuação institucional; é um conjunto de bens com significado específico; é um campo teórico.
Seu sentido inicial foi associado ao termo monumento. Logo no momento da criação da instituição e da regulamentação do tombamento foi adotada a denominação patrimônio histórico e artístico nacional.
Dessa forma, recebe diversas adjetivações, tais como: material, imaterial, imóvel, móvel, tangível, intangível, integrado, mundial. Remete também para as designações de tombamento e de registro: centro histórico, formas de expressão, sítio paisagístico, sítio arqueológico, dentre vários.

PESQUISA:
Dentro dos processos que estão inseridos na realidade do patrimônio cultural, a busca, sistematização e documentação de dados, informações e saberes produzidos nas áreas de conhecimento, que interdisciplinarmente constituem o campo do patrimônio cultural, representam o que chamamos aqui de pesquisa. 

O conceito de pesquisa abarca também os setores que se constituíram no seio da instituição, como os arquivos e as bibliotecas, voltados para a guarda de documentação e de bibliografia necessárias para o trabalho de investigação que marcou os processos de preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Nesse sentido, estão associados a esse conceito não somente as diversas disciplinas acadêmicas cujas teorias influenciaram os trabalhos da instituição, como também a própria produção teórica realizada por esta e, assim, os lugares de memória dessa produção, como os arquivos e as bibliotecas.

PRESERVAÇÃO:
Preservação pode ser considerado o termo-chave mais significativo que retrata a trajetória da instituição, pois sintetiza o conjunto das práticas/ações que se ocupam do patrimônio cultural e hierarquicamente envolve a identificação, proteção, promoção, gestão do patrimônio cultural.

PROMOÇÃO:
Englobar em um verbete as ideias e ações voltadas para a educação, para a formação, para a divulgação, enfim, para a comunicação da instituição com a sociedade, é, de certa forma, temerário. Por outro lado, esses sentidos foram percebidos na própria história da instituição, com a criação de órgãos internos, como a Coordenação-Geral de Promoção do Patrimônio Cultural (Cogeprom) ou a Coordenação-Geral de Difusão e Projetos (Cogedip), que acumulavam aquelas ações. Ao incluirmos, no conceito de promoção, a educação, a formação e a divulgação, enfatizamos os processos de relacionamento entre a instituição e a sociedade.

REGISTRO:
O Registro se torna aqui um conceito em função das referências que este termo apresenta como instrumento de preservação do chamado patrimônio imaterial. Esse instrumento foi resultado de um longo processo de ampliação da atuação institucional com relação ao reconhecimento do patrimônio cultural de natureza imaterial, com o objetivo de valorizá-lo, por meio da produção de conhecimento a seu respeito, da ação de documentar seus processos de produção, com a parceria dos agentes envolvidos na sua prática. Dado o aprofundamento do entendimento acerca dele, as especificidades desses bens exigiram a criação de um instrumento também específico para sua salvaguarda, embora a discussão sobre a materialidade e imaterialidade dos bens seja comum ao universo dos bens culturais como um todo e não um meio para distingui-los.

TOMBAMENTO:
O instituto do tombamento está relacionado ao nascimento da instituição e é o instrumento de proteção ao patrimônio material mais conhecido. Relaciona-se também com as limitações à propriedade privada, a oposições como caracterização/descaracterização, congelamento/flexibilidade, fachadismo, autenticidade, valor nacional, destombamento. Se por um lado, é um termo relacionado a questões administrativas e técnicas, por outro, envolve discussões sobre valor, autenticidade, intervenção urbana.

VALOR:
O termo valor implica sentidos e significados relacionados ao patrimônio cultural. Originário da filosofia, implica a ideia de seleção e qualificação. Está associado a ações de preservação, definidas em expressões como “atribuição de valor” ou “valorização”. Nesse sentido, quase nunca aparece dissociado das atividades na área da preservação, indicando, em geral, sentidos e significados aos objetos patrimonializados: valor artístico, valor histórico, valor arquitetônico, valor simbólico, valor nacional. A discussão sobre os valores traz para o campo da preservação a oposição entre a universalidade e a relatividade do conhecimento e, por extensão, a legitimidade do reconhecimento dos bens e manifestações culturais diversos.

3. Terceira Parte: Verbetes

Nesta parte, propomos a escrita de verbetes, alocados em ordem alfabética. O levantamento desses termos é resultado de pesquisas realizadas por equipes que vêm trabalhando na elaboração do Dicionário IPHAN do Patrimônio Cultural há três anos. A lista apresentada não é completa e nem definitiva. Ela requer desenvolvimento constante que permita a atualização de uma linguagem dinâmica e criativa. 

Os quase 300 termos arrolados foram associados aos doze conceitos fundamentais apresentados acima. Assim como os artigos, a escrita dos verbetes é também fruto do trabalho coletivo.

Como afirmamos antes, cremos que muitos desses verbetes possam receber, posteriormente, o tratamento dado aos termos-chave.

Sobre fontes
Inicialmente havíamos pensado em trazer já nesta apresentação do Dicionário as fontes arroladas pelos doze conceitos, contudo vimos que isso deveria ser realizado a partir dos textos produzidos. 

Gostaríamos, porém, de deixar nossa opinião aqui sobre o que consideramos fontes. 

No sentido de verificar os significados dos conceitos ao longo da trajetória da instituição, os documentos oficiais – legislação, atas, pareceres –, constituem-se em fontes primárias fundamentais para especificá-los no campo do patrimônio cultural relacionado ao IPHAN; assim também os textos das publicações institucionais (como a Revista do Patrimônio e o Boletim Pró-Memória).

Consideramos também que as obras de síntese sobre a história do patrimônio no Brasil são adequadas para contextualizar os momentos em que o conceito pôde ser modificado.

Mas, além disso, defendemos que as fontes que devem abastecer o trabalho dos textos no Dicionário devem compreender diversas origens, naturezas e suportes. Dessa forma, fontes escritas, orais, iconográficas, arquitetônicas, arqueológicas etc., escritas em língua portuguesa ou em estrangeira, obtidas em suportes tradicionais ou modernos, devem ser bem-vindas, contanto que sejam referidas dentro dos padrões usados na instituição.
Temos que ter consciência de que, ao escrever o Dicionário, estamos também gerando fonte para outras pesquisas.

Conclusão

Devemos destacar que consideramos o Dicionário IPHAN do Patrimônio Cultural uma obra coletiva. Assim, toda a obra, constituída pelas partes aqui sugeridas, constitui-se como fruto dessa colaboração em rede. A proposta de chamada de artigos direcionados para os doze termos está calcada na crença de que essa forma é um estímulo para o desenrolar da obra. Assim, abrimos também a chamada para a elaboração dos verbetes, cujos textos aqui apresentados devem ser encarados como introdutórios e provocadores. Diferentemente dos artigos, os textos dos verbetes buscam seguir uma orientação mais objetiva, sintética e definidora. 

Por fim, propomos a seguir um roteiro para o desenvolvimento dos artigos referentes aos doze primeiros termos-chave, que se baseia em três focos principais: abordagem do conteúdo histórico do conceito; explicitação das principais noções que são a ele relacionadas; e apresentação do quadro atual ao qual o conceito está ligado:

1. Até que ponto é comum o uso do conceito?

2. Seu sentido foi objeto de disputa?

3. Qual o contexto social de seu uso? 

4. Como se constituiu historicamente a formação do conceito? Em que contextos históricos aparece?

5. Com que outros termos aparece relacionado, seja como complemento ou como oposição? 

6. Que momentos podem ser considerados como cortes sincrônicos, ou seja, em que momentos ocorreram mudanças no conceito?

7. Por quem foi usado, com que propósitos e a quem se dirige?

8. Por quanto tempo esteve em uso?

9. Qual o valor do conceito na estrutura da linguagem institucional?

10. A que outros termos se sobrepõe?

11. Converge ao longo do tempo com outros termos?   

12. Como o conceito se articulou com outras noções, seja de forma complementar ou oposta?


Referência bibliográfica
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François (Dirs). Dictionnaire encyclopédique de muséologie. Paris: Armand Colin, 2011.

Como citar: THOMPSON, Analucia. A composição do Dicionário. In: RESENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia. Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2014. 

Compartilhar
Facebook Twitter Email Linkedin