Dicionário do Patrimônio Cultural

Lugares

Verbete

Luana Teixeira

Lugares são espaços físicos imbuídos de significação cultural, aos quais são atribuídos valores. No Brasil, o termo se integrou definitivamente ao vocabulário patrimonial em 2000, a partir do Decreto nº 3.551 – no qual foram instituídos os quatro Livros de Registro, dentre eles, o dos Lugares – e da aplicação do Inventário Nacional de Referências Culturais. Nesse quadro, Lugar é, portanto, uma categoria de classificação de bens culturais.

As questões relativas à conceituação do termo no campo do patrimônio cultural remontam à década de 1980, quando houve uma forte pressão social para a ampliação dos instrumentos de reconhecimento e proteção ao patrimônio cultural. Esteve no centro desse processo o debate em torno de referenciais culturais relacionados à história e à cultura afro-brasileira e indígena. A valorização de determinados espaços e edificações relacionados a esses grupos não necessariamente estavam de acordo com as categorias previstas no instrumento de tombamento. Em outras palavras, os valores atribuídos a esses lugares não eram salvaguardados por aquele instrumento. Essa disparidade entre os valores culturais atribuídos aos bens por determinados grupos sociais e os instrumentos disponíveis para a proteção do patrimônio cultural ficou evidente no caso do Terreiro da Casa Branca (Terreiro de Candomblé Ilê Axé Iyá Nassô Oká), na Bahia. O tombamento do terreiro, em 1986, foi uma “situação inédita e desafiante”, pois, apesar de possuir uma tradição de mais de 150 anos e desempenhar um “importante papel na simbologia e no imaginário dos grupos ligados ao mundo do candomblé e aos cultos afro-brasileiros em geral” (VELHO, 2006, p. 238), os aspectos materiais de suas edificações eram diferentes daqueles que, por décadas, haviam embasado as ações de tombamento. A principal dissonância se encontrava nas dinâmicas dos usos e das apropriações dos espaços. A valorização do terreiro como bem cultural ocorria justamente em função da intervenção, da transformação e da constante atualização das relações entre os sujeitos e seu referencial cultural. Apesar dos intensos debates, uma forte mobilização social garantiu a efetivação do tombamento do Terreiro da Casa Branca. Uma das principais consequências desse processo foi a evidenciação de que o tombamento não era mais suficiente para a tarefa de proteção e preservação de parte do patrimônio cultural brasileiro. 

Na década de 1990 houve o avanço do campo do patrimônio cultural no sentido de criar novas categorias e instrumentos para a proteção e valorização de uma gama mais plural e diversificada culturalmente de bens, passando a coexistir, junto ao tombamento, o instrumento do registro (Decreto nº 3.551, de 2000). Nesse processo, a categoria Lugar se consolidou como forma de compreender um referencial cultural especializado, cujo valor não se concentra estritamente em seus aspectos construtivos ou históricos. Desse modo, a categoria diz respeito a um recorte espacial dotado de significação cultural e social expressas no tempo presente por meio da relação que pessoas e grupos estabelecem com ele. Nesse sentido, a categoria Lugar compreende demarcações físicas e simbólicas no espaço, “cujos usos qualificam e lhes atribuem sentidos de pertencimento, orientando ações sociais e sendo por estas delimitadas reflexivamente” (LEITE, 2004, p. 35).

Um elemento importante para a compreensão da categoria diz respeito a sua unidade. Nesse sentido, diversas composições são possíveis. O Decreto nº 3.551 determina que no Livro de Registro dos Lugares “serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas”. Mas as possibilidades são múltiplas, como um bairro, um conjunto de prédios, uma zona de mata, uma casa, um conjunto de cavernas, um estádio de futebol. Não necessariamente deve haver uma contiguidade espacial na definição da unidade. Como Lugar se pode entender, por exemplo, um conjunto de fontes de água em uma região ou de caminhos que estejam relacionados entre si, pois, mesmo não estando em contato físico direto, o valor cultural de cada um apenas se constituiria no interior do conjunto. 

Para melhor compreensão acerca do que a categoria Lugar busca contemplar, é útil trazer os exemplos dos dois primeiros bens culturais registrados no Livro dos Lugares. A Cachoeira de Iauaretê (lugar sagrado dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri) foi o primeiro a ser inscrito, em 2006. A Cachoeira, localizada no estado do Amazonas, é um lugar sagrado de referência para diversas comunidades multiculturais, na sua maioria compostas pelas etnias de filiação linguística Tukano oriental, Arwak e Maku. Embora haja variações nas formas pelas quais os grupos atribuem valor a esse bem, há a compreensão comum de que a história de fixação dessas etnias está relacionada àquele espaço; nas rochas e lajes ali presentes está inscrita sua história, bem como a da origem da humanidade. Além da relação com o passado dos grupos, o lugar sagrado é um elemento referencial presente na construção das identidades desses povos (IPHAN, 2006a).

O segundo bem é a Feira de Caruaru, que também obteve o registro em 2006. A Feira, que ocorre na cidade de Caruaru, em Pernambuco, é uma das maiores do Brasil e concentra grande diversidade de pessoas em torno da negociação de produtos, como gado, tabaco, artigos de couro, artesanato, cordéis, importados, frutas, verduras, bolos e uma infinidade de outros artigos. A origem da Feira de Caruaru remete aos primeiros tempos de ocupação da região, e hoje várias pessoas e espaços se integram, configurando uma relação que faz com que ela exista e continue funcionando como um lugar de convergência de pessoas e um “polo de preservação da identidade e de resistências culturais” (IPHAN, 2006b). 

Fica evidente, através da inscrição dos dois bens no Livro dos Lugares, que a dimensão histórica e identitária dos espaços naturais e sociais são os principais elementos de atribuição de valor. Por outro lado, os elementos materiais que os compõem, as pedras e lajes, as barracas da feira, o artesanato e o gado ocupam um lugar central no valor atribuído a esses bens. A espacialização opera como uma unidade que agrega os referenciais tangíveis e intangíveis; e estes existem de determinado modo porque se realizam naquele espaço.  Essa é a dimensão múltipla que a categoria procura abranger.

Fontes consultadas
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.
BRASIL. Decreto nº 3.551, de 04 de agosto de 2000. Institui o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Brasília, DF, 2000.
IPHAN. Dossiê de Registro: Cachoeiras de Iauaretê. Brasília: IPHAN, 2006 (a).
_______. Dossiê de Registro: Feira de Caruaru. Brasília: IPHAN, 2006 (b).
_______. Manual Inventário Nacional de Referências Culturais. Brasília: IPHAN, 2000.
LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas: Ed. da Unicamp; Aracaju: Ed. da UFS, 2004.
NORA, Pierre (Dir.). Les lieux de mémoire: la République. Paris: Gallimard, 1984. v. 1.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 237-248, 2006. 

Como citar: TEIXEIRA, Luana. Lugares. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6

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Ficha Técnica

Luana Teixeira Licenciada em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004), mestre em História Cultural, pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008), e em Preservação do Patrimônio Cultural (2012), pelo Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (PEP-IPHAN). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. Organizou o livro Patrimônio Arqueológico e Paleontológico em Alagoas (2012).