Dicionário do Patrimônio Cultural

Patrimônio etnográfico

Verbete

Ana Gonçalves

Na política voltada à preservação do patrimônio cultural no Brasil, a constituição de um patrimônio etnográfico remonta ao ano de 1936, quando, a pedido do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, Mário de Andrade elaborou o anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional (SPAN). Em sua proposta, as obras de arte seriam classificadas como arte histórica, arte erudita nacional, arte erudita estrangeira, artes aplicadas nacionais, artes aplicadas estrangeiras, arte popular, arte arqueológica e arte ameríndia. O patrimônio artístico popular, o arqueológico e o ameríndio seriam apreendidos em objetos, monumentos, paisagens e folclores (ANDRADE, 2002, p. 274-275).

Mário estabeleceu uma relação direta entre arte ameríndia e ciência arqueológica que salienta a dimensão viva e atual – portanto, não arqueológica – referente ao passado que ele atribuía às manifestações culturais dos grupos populares (GONÇALVES, 2012, p. 33). Entretanto, tal esforço de diferenciação entre a arte ameríndia e a arte popular foi flexibilizado quando o modernista decidiu agrupar em um único livro de tombamento, o Livro de Tombo Arqueológico e Etnográfico, as categorias de arte arqueológica, ameríndia e arte popular (ANDRADE, 2002, p. 277).

O patrimônio etnográfico surgiu na proposta do SPAN sob a rubrica dos binômios primitivo/nacional e urbano/rural, que faz referência a um “Outro” distinto em sua produção cultural, em sua estética, ou ainda em decorrência da significação a ele atribuída pelos ideais modernistas de brasilidade. Assim, apesar de distinguir a cultura indígena da cultura popular, o interesse na criação de um Livro de Tombo Arqueológico e Etnográfico visava à incorporação do “Outro”, forjado numa relação de alteridade estabelecida entre polos que se encontravam distanciados na estrutura social e que, por isso, não se referia apenas a distanciamentos geográficos, mas, sobretudo, às distâncias sociais, temporais e econômicas. Isso denota a dimensão política implícita na constituição de um patrimônio etnográfico, principalmente considerando-se que essa construção está voltada para sociedades detentoras de uma herança colonial carregada de legados culturais que, por vezes, adquirem a tonalidade de culturas de resistência frente à cultura dominante.

Reformuladas, as concepções presentes no anteprojeto de Mário de Andrade foram incorporadas ao Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que ainda hoje organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. No texto legal, o patrimônio etnográfico é mencionado no artigo primeiro, quando é definida a constituição do patrimônio artístico nacional: “conjunto de bens imóveis existentes no país e cuja conservação, seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (BRASIL, 2006, p. 99). E, no artigo quarto, quando são destinados ao Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (LAEP), os bens pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, além das paisagens (BRASIL, 2006, p. 100).

Na política institucional do IPHAN o patrimônio etnográfico abrange tanto bens de natureza material, regidos pelo Decreto-lei, quanto bens de natureza imaterial, tal como disposto no Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Por patrimônio etnográfico de natureza material entendem-se aqueles bens culturais que, em sua apreciação e valoração como patrimônio, têm referência à observação da materialidade da coisa, isto é, os bens etnográficos tombados. Por sua vez, os patrimônios etnográficos de natureza imaterial são aqueles cuja apreciação e valoração privilegiam a dimensão intangível do bem, ou seja, os bens etnográficos registrados. Instituído pelo Decreto nº 3.551/2000, o Registro de Bens de Natureza Imaterial se orienta pelo disposto nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 e se dedica ao reconhecimento e à preservação de bens culturais associados às práticas e dinâmicas sociais expressas como ofícios, saberes, celebrações, formas de expressões e lugares.

Vale lembrar que a indivisibilidade do patrimônio cultural faz com que a definição material/imaterial no patrimônio etnográfico do IPHAN seja uma classificação de ordem administrativa, uma vez que todo patrimônio etnográfico material pode também ser considerado em sua dimensão imaterial, assim como os bens de natureza imaterial resguardam relação com as materialidades que lhes são referentes.

Tal configuração demanda que a escolha do instrumento de preservação a ser empregado esteja em consonância com a dimensão que se deseja enfatizar no ato de preservação do bem cultural. Se a material, em decorrência do previsto no Decreto-lei 25/37, utiliza-se o instrumento de proteção do tombamento, havendo a inscrição do bem no LAEP. Se o valor do bem recai mais fortemente sobre sua dimensão imaterial, recorre-se a um dos Livros de Registro criados pelo Decreto nº 3.551/2000.

No limite entre esses dois tipos de patrimônio etnográfico – material e imaterial – há ainda aqueles que Gonçalves (2013) classifica como patrimônios etnográficos simbióticos, que são os patrimônios etnográficos em que tanto a dimensão material quanto a imaterial são imprescindíveis à compreensão e transmissão do bem como tal. E isso acontece porque nos patrimônios simbióticos as integralidades da matéria e da representação sobre a matéria concorrem para um único objetivo, que é dar significado ao próprio bem cultural. Sendo assim, a dimensão material/imaterial mantém uma relação de interdependência com a materialidade/imaterialidade. E essa relação é tão importante que, se afastado dela, o bem perde sentido ou é afetado negativamente em sua apreensão.

Entre os bens registrados, um lugar como a Cachoeira de Iauaretê (Processo nº 01450.010743/2005. Inscrito em 2006 no Livro de Registro de Lugares ) serve como exemplo, porque tanto sua materialidade (formação rochosa) quanto sua imaterialidade (as significações culturais que lhe são atribuídas) são imprescindíveis à sua apreensão como bem referencial dos povos indígenas dos rios Uaupés e Papuri. De modo igual, os tombamentos etnográficos de terreiros de candomblé, como o Casa Branca (Processo nº 1067-T-82. Inscrito em 1986 no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico), exemplificam essa simbiose quando estruturas e ritos se retroalimentam para nos informar acerca do bem cultural.

Os patrimônios etnográficos colocam a necessidade da articulação entre os instrumentos de tombamento e de registro para viabilizar a adequada gestão do bem patrimonializado. Este é um desafio atualmente posto à gestão do patrimônio cultural no IPHAN e especificamente de seu patrimônio etnográfico: conjugar a utilização dos dois principais instrumentos de preservação do patrimônio cultural brasileiro a fim de garantir a proteção eficaz de um mesmo bem, associando planos de salvaguarda e projetos de restauro e conservação.

Fontes consultadas
ANDRADE, Mário de. Anteprojeto para a criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 30, p. 272-287, 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
______. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. In: IPHAN. Coletânea de leis sobre preservação do patrimônio cultural. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006, p. 99-107.
______. Decreto nº 3551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm>. Acesso em: 25 fev. 2014.
GONÇALVES, Ana. As dinâmicas das duas metades: tombamento e patrimônio etnográfico no IPHAN. 2013. 155 f. Dissertação (Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural) – IPHAN, Rio de Janeiro, 2013.
IPHAN. Dossiê IPHAN 7 – Cachoeira de Iauaretê: lugar sagrado dos povos indígenas dos Rios Uaupés e Papuri (AM). Brasília: Departamento do Patrimônio Imaterial/IPHAN, 2008. 
_______. Processo nº 1067-T-82. Terreiro da Casa Branca. Rio de Janeiro: Arquivo Central do IPHAN/Seção Rio de Janeiro.

Como citar: GONÇALVES, Ana. Patrimônio etnográfico. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6

 

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Ficha Técnica

Ana Gonçalves Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo IPHAN.