Dicionário do Patrimônio Cultural
Espaço
Verbete
Marcelo Antonio Sotratti
Embora o espaço seja um elemento trabalhado e estudado em diversas disciplinas das ciências humanas, das ciências sociais e das ciências exatas, é na geografia que a preocupação epistemológica e conceitual acerca de sua natureza e de suas relações assumiu papel central. A geografia é a ciência que estuda o espaço geográfico. Espaço para a geografia é o espaço habitado, transformado e utilizado pelo ser humano. É a porção da superfície terrestre que abriga as sociedades, envolvendo as relações humanas e suas produções materiais, como os edifícios, as áreas de exploração agrícola e as cidades.
Pesquisadores importantes da geografia moderna, como Milton Santos e David Harvey, apresentam questões conceituais acerca do espaço e de sua relação com as transformações sociais, econômicas e tecnológicas observadas atualmente com a globalização. Costa (2014) salienta que Harvey elaborou fortes críticas em relação à falta de preocupação com o conceito de espaço nas ciências humanas e nas ciências sociais e que, para ele, tanto a geografia como o espaço não foram apropriadamente investigados e analisados:
Marx, Marshall, Weber e Durkheim tinham isso em comum: davam prioridade ao tempo e à história e não ao espaço e à geografia, e, quando tratavam do espaço e da geografia, tendiam a considerá-los de modo não problemático, enquanto contexto ou sítio estável para a ação histórica (HARVEY, 2006, p. 142).
Para Harvey (2012) o espaço é uma palavra chave e complexa, cujo significado e conceito devem ser analisados cuidadosamente. Segundo ele, o espaço pode ser avaliado a partir de uma divisão tripartite: espaço absoluto, espaço relativo e espaço relacional. O espaço absoluto é fixo, é onde são registrados ou planejados os eventos. Refere-se ao espaço do mapeamento cadastral, tridimensional, de localização e de posicionamento de determinado elemento, como um edifício, um centro histórico, uma cidade.
O espaço relativo se apresenta em dois sentidos: há múltiplas localizações que podem ser escolhidas, e o quadro espacial depende do que está sendo relativizado e por quem. Por essa razão o espaço relativo oferece uma multiplicidade de localizações, permitindo a elaboração de mapas completamente diferentes de localizações relativas a, por exemplo, custo, tempo, modo de transporte etc. É o espaço da circulação, dos usos e dos fluxos, das cartas temáticas, do movimento, da mobilidade, da aceleração e da compressão do espaço-tempo.
A noção relacional de espaço, por sua vez, implica a ideia de relações internas, segundo a qual um evento não pode ser compreendido a partir de um único ponto, mas dependerá de tudo o que ocorre ao seu redor. Nessa formulação, assim como no caso do espaço relativo, é impossível separar espaço e tempo. Para analisar o patrimônio como espaço, o conceito de espaço relacional é fundamental, pois implica no estabelecimento de um valor simbólico atribuído a esse elemento, o que confere a ele um sentido completamente diferente ao de sua localização cartográfica ou tridimensional.
Nesse sentido, Harvey (2012) salienta a contribuição de Lefèbvre ao definir igualmente o espaço pela sua materialidade, pela sua representação, mas também pelo espaço vivenciado, ou seja, pelo espaço vivido das sensações, das emoções e dos significados.
O conceito de espaço para Milton Santos (1997) se apoia na argumentação de que ele é formado por um conjunto híbrido de sistemas de objetos e sistemas de ações. Essa formação indissociável deve ser analisada conjuntamente para a compreensão da dinâmica espacial. O sistema de objetos compreende a totalidade das coisas configuradas para o uso humano. Ao designar sistemas de objetos, Santos (1997) faz menção ao pensamento de Baudrillard, segundo o qual os objetos apresentam significado para a vida humana. Reconhecer os objetos em sua totalidade e sentido favorece a percepção da importância dos sistemas de ações na concepção de espaço.
O sistema de ações compreende a interação e a apropriação humana do sistema de objetos em sua totalidade: ações transformadoras dos objetos e ações que recaem sobre o próprio homem. Dessa forma, o pesquisador reitera o caráter técnico e simbólico das ações humanas. O sistema de objetos e suas transformações se apoiam na utilização da técnica desenvolvida durante o processo histórico do homem; em contrapartida, “as ações humanas são permeadas por representações simbólicas, ou seja, intencionalidades, sobre os objetos e sobre as próprias pessoas” (SANTOS, 1997, p. 66-67).
Concebida como uma essência da natureza humana presente nas relações entre sujeito e objeto, a intencionalidade expressa as crenças, os desejos, as intenções dos homens e suas ações sobre os objetos. A intencionalidade pode revelar a essência das ações humanas sobre os objetos, bem como o favorecimento da apropriação humana dos objetos através das técnicas. A intencionalidade expressa a forma como os grupos sociais transformam os espaços, adequando-os aos interesses da produção econômica, das classes dominantes, e mesmo como resposta às ordens hegemônicas locais ou globais.
A intencionalidade permite analisar a demarcação simbólica do espaço através do território. O território representa a influência de determinada forma de poder sobre o sistema de ações, implicando na construção do espaço. Essa forma intencional de poder pode estar relacionada a questões políticas, econômicas, culturais e sociais e resulta na transformação constante dos objetos e das ações em sua totalidade. O espaço da cidade apresenta diferentes territorialidades sob diferentes naturezas e escalas de poder. As territorialidades acabam por influenciar as mudanças espaciais no tempo, transformando objetos, ações e suas representações simbólicas (SANTOS, 1997).
Essa dissonância temporal na transformação do espaço pode implicar na permanência de alguns objetos antigos associados a técnicas e modos de produção de um momento histórico passado. Denominadas por Santos como rugosidades (2002), essas formas passadas são reincorporadas ao espaço em transformação por meio de diferentes ações. As rugosidades para Milton Santos podem ser associadas ao patrimônio cultural. A permanência desses objetos antigos, com novas ações, pode ser atribuída a intencionalidades geradas por organizações de interesse em sua preservação, ou mesmo pela organização ou apropriação social.
A discussão conceitual do espaço pensado pela geografia permite compreender de forma mais plena a complexidade do sistema de ações e objetos que envolvem a cidade contemporânea e seus elementos, dentre eles, o patrimônio cultural. Embora a aplicação do conceito de espaço seja polissêmica, sua compreensão para além de sua leitura estática e meramente de localização se faz necessária, justamente para o campo do patrimônio, no qual o valor simbólico e os usos atribuídos a ele são cruciais para sua preservação.
Fontes consultadas
COSTA, Fábio Rodrigues da. O conceito de espaço em Milton Santos e David Harvey: uma primeira aproximação. Revista Percurso – NEMO, Maringá, v. 6, n. 1, p. 63-79, 2014.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006.
______. O espaço como palavra-chave. Revista GEOgraphia. Rio de Janeiro: UFF, v. 14, n. 28, p. 8-39, 2012.
SANTOS, Milton. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: EDUSP, 2002.
______. Técnica, espaço, tempo globalização e meio técnico-científico informacional. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1988.
______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. In: ______. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1997.
Como citar: SOTRATTI, Marcelo Antônio. Espaço. In: REZENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2015. (verbete). ISBN 978-85-7334-279-6.
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Ficha Técnica
Marcelo Antonio Sotratti doutor e mestre em Geografia pela Unicamp. Professor-adjunto do Curso de Turismo, coordenador do Laboratório de Turismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor do corpo permanente do Programa de Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio do IPHAN e professor pesquisador-bolsista APQ-1 da Faperj. Desenvolve pesquisas na área de Planejamento Territorial, Patrimônio Cultural e Turismo. Em 2008 e 2009 atuou na Embratur/Unesco no desenvolvimento de Projeto de Promoção e Marketing Turístico do Turismo Cultural.