Dicionário do Patrimônio Cultural

Quilombo

Verbete

Beatriz Accioly Vaz

A Constituição Federal de 1988, ao trazer em dois de seus artigos termos associados aos quilombos, abriu portas para a apropriação dessa categoria pelos movimentos sociais camponeses mobilizados e organizados em torno do fator étnico. Processo esse não previsto pelos legisladores, que tratavam a categoria quilombo a partir de uma perspectiva passadista, baseada mais em uma abordagem arqueológica e exotizante do patrimônio cultural associado a outras matrizes culturais que não a luso-brasileira.

As diversas comunidades negras que permaneceram em seus territórios no período pós-abolição – invisibilizadas pelo Estado e sofrendo expropriações e violências de diferentes ordens – a partir do texto constitucional que estabelece no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, tornam-se coletivos portadores de direitos etnicamente diferenciados. O uso dos termos quilombo, remanescentes de quilombo, quilombolas, nesse sentido, fazia parte de um movimento de apropriação política de categorias legais e também de reconhecimento da existência de grupos detentores de modos de vida específicos associados à vivência da territorialidade e da diferenciação étnica.

A conceituação de comunidades remanescentes de quilombos, baseada em uma perspectiva antropológica não essencializante, calcada em princípios da teoria da etnicidade, abarcava a diversidade e dinamicidade das situações existentes afirmando para tanto que,

Contemporaneamente, portanto, o termo Quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. (ABANT, 1994 apud O’DWYER, 2002)

Tal conceituação, embora, incorporada à interpretação do artigo 68 dos ADCT não avançaria também para a discussão do artigo 216, no qual estabelecia-se no §5° “ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”. No âmbito das políticas culturais, apesar da concepção ampliada que trazia o texto do artigo a respeito do patrimônio cultural e da perspectiva antropológica que, anos depois, seria base para a constituição do campo do patrimônio cultural imaterial, os quilombos permaneceram sendo tratados através da perspectiva arqueológica e dos parâmetros tradicionais que orientaram as políticas de patrimônio histórico e artístico desde a década de 1930.

A partir da previsão constitucional do tombamento dos documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos, foram abertos onze processos de tombamento no âmbito do IPHAN, assim nominados: “Quilombo Vão do Moleque”, “Quilombo Flexal”, “Quilombos de Oriximiná”, “Área conhecida como Jamary dos Pretos ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Área conhecida como Mocambo ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Áreas conhecidas como Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Área conhecida como Castainho ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Área conhecida como Porto Coris ocupada por comunidade remanescente de Quilombo”, “Quilombo em Ivaporunduva”, “Área ocupada por comunidade remanescente de Quilombo conhecida como Campinho da Independência” e “Remanescentes do antigo Quilombo do Ambrósio”. Desses processos, apenas o último resultou no tombamento.

É sintomático que, além da Serra da Barriga, tombada em 1986 como homenagem ao Quilombo dos Palmares no bojo de reivindicações e da luta política dos movimentos sociais negros no país, o outro tombamento relacionado aos quilombos tenha sido o do Quilombo do Ambrósio em 2000. Assim como em Palmares, no Ambrósio não mais existiam comunidades que se reconheciam como quilombolas ou remanescentes de quilombos, mas em ambos foram encontrados vestígios arqueológicos e marcos geográficos que consagram historicamente tais locais como quilombos no sentido mais estrito do termo. Tal interpretação e uso do conceito de quilombo, corresponde ao que se consagrou na literatura antropológica como a concepção frigorificada (ALMEIDA, 2002, p. 47). Utiliza-se, para tanto, a conceituação de quilombos do período colonial, segundo a qual quilombo era definido como “toda a habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Tal definição teria sido formulada pelo Conselho Ultramarino em 1740 como resposta ao rei de Portugal e vinha sendo reproduzida pelos estudiosos e pelos operadores do direito sem nenhuma atualização, até a ressemantização do termo a partir da perspectiva antropológica da teoria da etnicidade, instigada pelos movimentos surgidos no bojo das inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988.

Em relação à tentativa de normatização da previsão constitucional de tombamento dos documentos e sítios detentores de reminiscências de antigos quilombos, o Parecer Deprot nº 47/98 estabelece uma conceituação de quilombos e uma proposta de atuação do IPHAN nessa questão. Nesse parecer, restringe-se a atuação do órgão às situações em que fossem encontrados vestígios materiais de existência dos antigos quilombos, sendo esses concebidos como

as comunidades auto-excluídas da sociedade nacional durante o período colonial até a abolição da escravatura, formados originalmente por negros escravos fugidos das áreas urbanas ou rurais onde existiam práticas de exploração escravista. (IPHAN, 1998, p. 7)

Dessa conceituação, depreende-se o sentido arqueológico e historicamente restrito atribuído aos antigos quilombos, em que a contemporaneidade das comunidades quilombolas e mesmo a consagração social de lugares como quilombos era preterida pela busca por comprovações materiais de um passado congelado.

Assim, em relação aos processos de tombamento, os quilombos permaneceram sendo tratados a partir do conceito colonial. Desde os primeiros pareceres a respeito do assunto, até os dias atuais, a discussão pouco avançou. Em 2005 o advogado Guilherme Cruz Mendonça, no âmbito do Programa de Especialização em Patrimônio PEP/IPHAN, elaborou um trabalho a respeito de tal questão que sugeria a redação de uma lei específica que regulamentasse o tombamento dos quilombos, entendendo que esse não se equipararia ao tombamento conforme o Decreto-Lei nº 25/37. Posteriormente, o Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização organizou em 2007 o Dossiê Quilombos, reunindo uma série de documentos como forma de subsidiar uma decisão por parte do Conselho Consultivo, a respeito de qual seria a ação do IPHAN com relação a essa temática. Essa medida não teve, até o presente, nenhum encaminhamento. Já em 2008, circulou internamente no IPHAN um texto escrito por Dalmo Vieira Filho, ex-diretor do Depam/IPHAN, em que se propunha um tratamento da questão do tombamento dos quilombos diverso do proposto no parecer Deprot nº47/98, ampliando, de certa maneira, a conceituação anterior.

No campo do patrimônio imaterial, fundado formalmente com o Decreto nº 3.551/2000, é notável que vários dos bens culturais registrados como patrimônio cultural nacional sejam encontrados em comunidades quilombolas, tais como o Jongo no Sudeste, o Samba de Roda do Recôncavo Baiano, o Complexo Cultural do Bumba-meu-Boi do Maranhão, dentre outros. Além disso, já foram realizados vários inventários culturais de comunidades quilombolas. Não é por acaso que o surgimento da política de patrimônio imaterial está relacionado ao maior reconhecimento de referências culturais afro-brasileiras e quilombolas. Trata-se da ascensão de um patrimônio cultural “não consagrado” relacionado a grupos e povos historicamente marginalizados e invisibilizados, bem como da mudança de perspectiva ligada ao conceito de referência cultural.

Por um lado, o patrimônio imaterial abriu as portas para o reconhecimento de referências culturais das comunidades quilombolas e instaurou uma perspectiva na qual o olhar dos sujeitos detentores do patrimônio tem relevância e não apenas o olhar do especialista. Por outro lado, manteve uma estrutura fragmentada que separa os bens em diferentes categorias – saberes, formas de expressão, celebrações e lugares –, ademais da já crítica ruptura entre o material e imaterial. Tal estrutura não permite o reconhecimento dos contextos de produção e reprodução dos bens culturais, da inter-relação entre esses e, tampouco, da territorialidade das comunidades quilombolas detentoras.

A dualidade da política de patrimônio cultural, que dissimula a permanência de hierarquias no campo e a prevalência de discursos hegemônicos através da ênfase nos instrumentos de proteção, é visibilizada no trato da questão quilombola. A justificativa da inadequação do instrumento do tombamento para o reconhecimento e proteção de bens ligados à matriz afrodescendente, tais como os quilombos, centra-se na percepção de que nesses contextos a preservação de uma estrutura material poderia contrariar a dinamicidade do espaço e do grupo que ali vive. Entretanto, há que se reconhecer que, desde o surgimento da política de patrimônio cultural nacional, o tombamento vem sendo usado de forma adaptada ao bem que se objetiva proteger, vide, por exemplo, os casos de tombamentos de cidades e centros urbanos, bens dinâmicos e em constante transformação. Dessa forma, o reconhecimento e salvaguarda dos quilombos joga luz sobre o caráter ideológico da construção dos patrimônios, já analisado por Fonseca (2005, p. 203).

Por fim, as referências culturais de comunidades quilombolas – de indígenas e outros povos e comunidades tradicionais – só serão realmente salvaguardadas quando as políticas patrimoniais voltarem seus esforços para as reais demandas dos grupos, não se atendo as separações dos campos “material x imaterial” e de seus respectivos instrumentos. Afinal, o samba, o jongo, a capoeira, o batuque – dentre outras referências pinçadas pelas políticas de patrimônio cultural – não podem ser compreendidos fora de seus contextos de produção e de todas as redes que relacionam e significam a cultura de um grupo.

Fontes Consultadas:
ALMEIDA, Maria Geralda de. Identidades territoriais em sítios patrimonializados: comunidade de quilombolas, os Kalunga de Goiás. In: TAMASO, Izabela; LIMA FILHO, Manuel Ferreira. Antropologia e Patrimônio Cultural. Brasília: Associação Brasileira de Antropologia, 2012. p. 245-264.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os Quilombos e as Novas Etnias. In: O’DWYER, Eliane Cantarino (Org.). Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.html>. 
BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Dossiê Quilombos [Material de subsídio para a definição pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural de uma ação do IPHAN no que tange ao tombamento dos sítios e documentos detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.] Rio de Janeiro, 2007. 155 p.
BRASIL. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Dossiê nº. 5 – Jongo no Sudeste. Brasília, DF: IPHAN, 2007.
______. Dossiê – Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Brasília, DF: IPHAN, 2006a.
______. Dossiê – Os Tambores da Ilha. Coordenação de Rodrigo Ramassote; textos de Sérgio Figueiredo Ferretti, Rodrigo Martins Ramassote, Valdenira Barros, Renata dos Reis Cordeiro, Sislene Costa, Bartolomeu Mendonça, Chistiane de Fátima Silva Mota. São Luís: IPHAN, 2006b.
______. Relatório Final INRC Sertão de Valongo. Florianópolis: IPHAN, 2007.
______. Relatório Final INRC Invernada dos Negros. Florianópolis: IPHAN, 2008.
______. Relatório Final INRC São Roque. Florianópolis: IPHAN, 2008.
______. Parecer Deprot/IPHAN nº 47 de 1998 [Proposta de definição de sítios e documentos detentores de reminiscências históricas de antigos quilombos].
______. Processo nº 1.304-T-90 [Referente ao tombamento do Quilombo Vão-do-Moleque, Cavalcante/GO]
______. Processo nº 1.352-T-95 [Referente ao tombamento do Quilombo do Flexal, Mirinzal/MA].
______. Processo nº 1.353-T-95 [Referente ao tombamento dos Quilombos de Oriximiná, Oriximiná/PA]
______. Processo nº 1.398-T-97 [Referente ao tombamento da Área conhecida como “Jamary dos Pretos”, ocupada por comunidade remanescente de quilombo (...), Turiaçu/MA].
______. Processo nº 1.399-T-97 [Referente ao tombamento da Área conhecida como “Mocambo”, ocupada por comunidade remanescente de quilombo (...), Porto da Folha/SE].
______. Processo nº 1.400-T-97 [Referente ao tombamento das Áreas conhecidas como “Riacho de Sacutiaba” e Sacutiaba, ocupadas por comunidade remanescente de quilombo (...), Wanderley, BA].
______. Processo nº 1.401-T-97 [Referente ao tombamento da Área conhecidas como “Castainho”, ocupada por comunidade remanescente de quilombo (...), Garanhuns/PE].
______. Processo nº 1.409-T-98 [Referente ao tombamento da Área conhecida como “Porto Coris”, ocupada por comunidade remanescente de quilombo (...), Leme do Prado/MG].
______. Processo nº 1.410-T-98 [Referente ao tombamento da Área conhecidas como “Ivaporanduva”, ocupada por comunidade remanescente de quilombo (...), Eldorado/SP].
______. Processo nº 1.069-T-82 [Referente ao tombamento da Serra da Barriga (Quilombo dos Palmares), União dos Palmares/AL].
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Etnográfica, Lisboa, v. IV, n. 2, p. 333-354, 2000. 
MENDONÇA, Guilherme Cruz de. Considerações jurídicas sobre o tombamento dos antigos quilombos: conceitos, categorias e instrumentos. In: PROGRAMA de Especialização em Patrimônio – artigos (2005 e 2006). Rio de Janeiro: IPHAN/Copedoc, 2009. p. 301-332. (Patrimônio: Práticas e Reflexões; 3)
O’DWYER, Eliane Cantarino. Quilombos – identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2002.
VAZ, Beatriz Accioly. Quilombos e patrimônio cultural: reflexões sobre direitos e práticas no campo do patrimônio. 2014. Dissertação (Mestrado em Preservação do Patrimônio Cultural) – IPHAN, Rio de Janeiro, 2014. 
VELHO, Gilberto. Patrimônio, Negociação e Conflito. Mana [online], v. 12, n. 1, p. 237-248, 2006.
VIEIRA FILHO, Dalmo. Tombamento dos Quilombos: atualizando a discussão. IPHAN, s/data.

Como citar: VAZ, Beatriz Accioly. Quilombos. In: GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. (verbete). ISBN 978-85-7334-299-4

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Ficha Técnica

Beatriz Accioly Vaz Cientista Social e Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo PEP/MP (IPHAN). Atualmente é Analista Pericial em Antropologia do Ministério Público Federal em Minas Gerais.