Federação das Organizações Indígenas abre novo espaço em São Gabriel da Cachoeira (AM)

publicado em 09 de dezembro de 2008, às 16h29

 

O local foi inaugurado com a com exposição Basá Busá - Ornamentos de Dança 

A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) abriu as portas de seu novo Centro de Formação ao público de São Gabriel da Cachoeira no último dia 7 de dezembro. Na ocasião o local foi inaugurado também como Pontão de Cultura  e houve a abertura da exposição Basá Busá – Ornamentos de Dança, que fica em cartaz até o primeiro trimestre de 2009.

A mostra celebra o retorno de cerca de uma centena de objetos rituais indígenas retirados da região pelos missionários salesianos, responsáveis pela implantação de missões religiosas ao longo da primeira metade do século XX no Rio Uaupés. É dirigida tanto à população urbanizada na sede municipal, distante 900 quilômetros a noroeste de Manaus, como àquela residente nas inúmeras comunidades indígenas situadas no interior do município. A extensão de São Gabriel da Cachoeira é de 100 mil km2, e grande parte dela é reconhecida oficialmente como Terra Indígena.

O Centro de Formação da Foirn ocupa o andar térreo de um edifício projetado pela Brasil Arquitetura, construído com o apoio do governo do Estado do Amazonas e equipado com recursos do Ministério da Cultura, como parte do programa Pontão de Cultura. 

Ornamentos repatriados
Os ornamentos que compõem a exposição Basá Busá (adornos de dança) formam um conjunto heterogêneo de peças recentemente repatriadas do Museu do Índio de Manaus para a região do Alto Rio Negro. A exposição tem por finalidade dar visibilidade ao retorno desses objetos à sua região de origem, de onde saíram há muitas décadas. Num passado relativamente distante, a guarda e uso dessas peças pelos povos indígenas revestiam-se de caráter cerimonial. 

Sob os cuidados de especialistas denominados bayá - guardiães dos cantos próprios aos diversos clãs das etnias de fala tukano do Rio Uaupés (Tukano, Desana, Pira-Tapuia, Wanano, Tuyuka, Arapasso, Cubeu e outros) – os objetos eram conservados em caixas especialmente confeccionadas em palha, mantidas suspensas na parte superior das antigas e grandes moradias coletivas – as chamadas malocas. 

As caixas eram baixadas e abertas em ocasiões especiais para os rituais de iniciação e de troca entre seus donos e grupos aliados. Conta-se que esses adornos constituem um legado dos ancestrais, que os trouxeram desde o Lago de Leite até o Rio Uaupés, em uma longa jornada pela costa brasileira e ao longo dos rios Amazonas e Negro. Viajando no interior de uma cobra-canoa, seu intento era o de povoar a região com uma nova humanidade, cuja qualidade singular é marcada, precisamente, por meio da propriedade dos adornos cerimoniais. Todos os grupos do Uaupés possuíam conjuntos idênticos desses objetos.

No final da década de 1920, com a chegada dos missionários salesianos à região e a subseqüente implementação da catequese religiosa visando à “civilização” dos povos indígenas, a quase totalidade destes ornamentos desapareceu. Vários foram levados para museus ou vendidos, pois de acordo com o veredito dos missionários, estes ornamentos sagrados simbolizavam “coisas do diabo”. Outros foram adquiridos por comerciantes e religiosos que andavam pela região. Muitos dos ornamentos que foram adquiridos passaram a integrar coleções e acervos particulares. 

A partir da década de 1950, as Irmãs Filhas de Maria Auxiliadora, que, ao lado dos salesianos mantinham atividade missionária no Rio Uaupés, iniciaram a montagem do Museu do Índio de Manaus, para o qual uma boa parte desses adornos foi destinada. O museu é mantido pelo Patronato Santa Teresinha e faz parte do roteiro turístico da cidade de Manaus. Há vários anos, os índios do Rio Uaupés sabem da existência desse acervo, o que causa alguma perplexidade: se eram coisas do diabo, por que não foram destruídos? Essa era a pergunta de muitas pessoas na região, e se associava ainda a um outro incômodo: a riqueza das antigas malocas do Uaupés passou a ser exibida para os turistas que visitam Manaus, que pagam para vê-las.

Visita a Manaus
Entre os anos de 2005 e 2006, durante os estudos  de campo para o registro da Cachoeira de Iauaretê como patrimônio imaterial – atividade realizada no âmbito de uma parceria estabelecida pela Foirn e o Instituto Socioambiental (ISA) com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – pessoas de diferentes partes do Rio Uaupés expressaram seu desejo aos técnicos do Iphan e do ISA de realizar uma visita a Manaus a fim de verificar o que se encontrava guardado no “museu das freiras”. 

Duas visitas foram realizadas, em novembro de 2006 e em setembro de 2007, das quais participaram dois tariano (Luís Aguiar e Adriano de Jesus) e um tukano (Laureano Maia). Entre essas duas visitas, o Iphan procedeu, em agosto de 2006, ao registro da Cachoeira de Iauaretê como patrimônio cultural brasileiro no Livro de Lugares, dispositivo oficial de reconhecimento de bens culturais de natureza imaterial. 

A segunda visita ao museu já ocorreu, portanto, no âmbito das atividades pós-registro fomentadas pelo Iphan na região. Foi nessa ocasião que os três visitantes procederam à identificação de 108 itens pertencentes a 16 tipos de objetos que fazem parte do conjunto de adornos de dança dos povos do Uaupés – acângataras de penas de arara, tucano, japu e garça; cordas de pelos de vários tipos de macacos, cintos de dentes de onça e capivara, entre outros. 

Desde a primeira visita, Luiz Aguiar, Adriano de Jesus e Laureano Maia vinham manifestando a intenção de reaver as peças e conservá-las em moldes tradicionais. O destino pensado para esses adornos é reformá-los e depositá-los novamente em uma caixa de palha, a ser introduzida em uma das duas malocas recentemente reconstruídas em Iauaretê. Esse plano de apropriação já começou a ser posto em prática por ocasião da seleção e da própria disposição das peças nas vitrines da exposição. 

O trabalho inicial foi executado por Laureano Maia, Tukano, Luis Aguiar, Tariano, Mário Tenório, Tuyuka, e Manuel Tenório, Tuyuka. O acompanhamento museológico dessa curadoria indígena ficou a cargo de Lúcia van Velthem (Ministério da Ciência e Tecnologia). O projeto expográfico foi realizado por Cícero Ferraz Cruz, da Brasil Arquitetura.

O papel do Iphan 
Com base na demanda indígena pela repatriação das peças, ainda em 2006, o Iphan, em parceria com o ISA e a Foirn, iniciou uma negociação com o Patronato Santa Teresinha visando o retorno destes ornamentos ao Uaupés. Coube ao Iphan e ao ISA a tarefa de construir um instrumento jurídico de modo que esta transferência se fizesse com base em princípios legais. Importante mencionar que o retorno dos ornamentos a Iauaretê se constituiu em uma ação institucional inteiramente nova. Por esta razão, o instrumento jurídico elaborado para esse caso tem um caráter inaugural. 

Trata-se de um Termo de Compromisso, que traz orientações importantes. 

Fica estabelecido, por exemplo, que “a presente repatriação representa uma medida de resgate e valorização cultural dos povos indígenas Tariano e Tukano, especialmente considerando que o Iphan, após estudo do tema, obteve do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural aprovação para inscrição no seu Livro de Registro dos Lugares, na forma do Decreto n° 3551/00, como patrimônio cultural brasileiro de natureza imaterial, o bem conhecido como Cachoeira de Iauaretê, localizada no distrito de Iauaretê, município de São Gabriel de Cachoeira (Amazonas), como lugar sagrado dos povos indígenas do Rio Uaupés.”

Propriedade coletiva
Da mesma forma, e em função da inexistência de informação quanto às comunidades de origem das peças, ficou estabelecido que os objetos repatriados são de propriedade coletiva dos povos indígenas da Bacia do Rio Uaupés, e permanecerão sob a guarda do Centro de Estudos e Revitalização da Cultura Indígena de Iauaretê (Cercii), que atuará como seu fiel depositário. Essa organização é dirigida por um grupo de senhores pertencentes a várias etnias, e, com o apoio da Foirn, assumiu para si a construção de uma das malocas de Iauaretê, onde, uma vez encerrada a presente exposição, deverão ser guardados os ornamentos. 

De acordo com o Termo de Compromisso, “caberá ao Cercii, com apoio do Iphan quando solicitado:
-zelar pelo bom uso, manutenção e guarda em local apropriado dos ornamentos sagrados;
- ceder mediante empréstimo os ornamentos sagrados aos povos indígenas do Rio Uaupés para uso ritual, confecção de novos ornamentos, manutenção ou outra finalidade correlata, cabendo também a responsabilidade de reavê-los de quem de direito.

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