Registro do Patrimônio Imaterial faz 10 anos

Por Luiz Fernando de Almeida
Presidente do Iphan

No mês de agosto, o Decreto que instituiu o Registro de bens culturais imateriais e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, completou 10 anos. A ideia de bem cultural de natureza imaterial tem, na realidade, uma trajetória bem mais antiga no Brasil. Mário de Andrade, por exemplo, já levantava nos anos de 1930 a bandeira da importância cultural e patrimonial dos saberes e celebrações tradicionais e das expressões musicais, plásticas e cênicas da nossa cultura popular, colocando-os em pé de igualdade com os monumentos, sítios urbanos e obras de arte protegidos como patrimônio. Contudo, o Decreto foi fundamental para o estabelecimento de um instrumento de preservação adequado à natureza dinâmica e processual desse tipo de bem cultural e para a consolidação da base conceitual e legal para sua efetiva salvaguarda. Ao criar o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial - PNPI, este Decreto forneceu ainda a base institucional para a execução dessa tarefa em estreita parceria com a sociedade.

Nesses 10 anos, especialmente a partir da criação do Departamento do Patrimônio Imaterial do Iphan em 2003, muito se realizou. Mais de 50 inventários de referências culturais foram concluídos em todo o território nacional, 21 bens culturais imateriais foram registrados e declarados Patrimônio Cultural do Brasil e 46 projetos de salvaguarda encaminhados por organizações da sociedade foram fomentados. O mais importante, contudo, não são esses números, mas a luz que essa experiência joga sobre o processo de constituição de patrimônios culturais e a contribuição que dá às políticas de preservação de um modo geral.

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a noção de patrimônio cultural imaterial pressupõe a ação humana como condição para a existência e permanência do bem cultural, o que tem, pelo menos, duas implicações importantes: o reconhecimento de que a identificação e constituição de patrimônios é um processo social contínuo; e que não é possível preservar bem culturais sem a participação ativa dos sujeitos que lhes atribuem valores e com eles se relacionam e interagem. É, portanto, uma abordagem que aproxima a idéia de bem cultural das pessoas, elimina a necessidade do saber especializado – e, para muitos, inatingível – como condição de apreensão desse universo e repercute positivamente nas demais políticas de preservação, especialmente no plano ambiental e urbano, ao dar visibilidade a toda uma produção cultural que pode contribuir para a dinamização socioeconômica de áreas preservadas.

A política de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial permitiu ainda atuar mais amplamente junto a regiões e segmentos sociais que, por muito tempo, ficaram à margem das políticas de preservação. Grupos indígenas, quilombolas ou afro-brasileiros, comunidades ribeirinhas, artesanais ou, atualmente, definidas como “tradicionais” tornaram-se sujeitos de processos de salvaguarda e já começaram a auferir benefícios em termos de visibilidade e reconhecimento cultural, com importantes reflexos em termos de auto-estima, ampliação de horizontes e de formas de relacionamento com o Estado e o restante da sociedade. Trata-se, portanto, de política essencialmente inclusiva que permite que uma baiana de acarajé ou um mestre de capoeira em Salvador, mas também em São Paulo, no Rio de Janeiro ou em Niterói, se sintam parte do patrimônio nacional como detentores de conhecimentos específicos e testemunhos vivos de ofícios urbanos que informam muitas coisas sobre a história do país.

Identificar e conhecer, de modo mais aprofundado, esse patrimônio é fundamental para orientar o Estado e a sociedade em termos das ações estratégicas que devem ser desenvolvidas para apoiar e garantir sua continuidade de modo sustentável e mantendo a autonomia dos grupos detentores. Declarar que uma manifestação cultural é patrimônio pode ser feito a qualquer momento, mas para efetivamente valorizá-la e fortalecê-la é necessário compreender seus mecanismos de transmissão e reprodução, bem como as condições sociais, materiais e ambientais que são necessárias para que se desenvolva. Por isso, após o Registro de um bem, o Iphan formula e implementa, junto com as comunidades e demais atores sociais envolvidos, planos de salvaguarda que visam, por meio de ações de curto, médio e longo prazo, a melhorar essas condições. Como se vê, é algo muito distinto de uma mera declaração ou mesmo de uma lei que simplesmente afirma que tal expressão da cultura é patrimônio.

Outro princípio fundamental da política de salvaguarda é a sua difusão, de modo que, para além dos grupos e comunidades que mantêm e reproduzem esses bens, eles se tornem mais conhecidos e valorizados pelo conjunto da sociedade. Assim, Iphan tem envidado esforços para editar e divulgar as experiências de salvaguarda que tem empreendido com vários parceiros governamentais e não-governamentais, assim como para dar ao público amplo acesso ao conhecimento produzido no âmbito dos processos de inventário e Registro. Um momento importante das comemorações dos 10 anos da política do Patrimônio Imaterial é então o lançamento no portal do Iphan na internet do Banco de Dados dos Bens Culturais Registrados – BCR.

Com essa ferramenta qualquer pessoa em qualquer ponto do país poderá conhecer melhor o samba de roda, o jongo, o tambor de crioula, a arte Kusiwa dos índios Wajãpi, a renda irlandesa de Sergipe, o ofício das Paneleiras do Espírito Santo, a Cachoeira de Iauaretê, no Alto Rio Negro, a Festa do Divino de Pirenópolis, Goiás, e muitas outras manifestações culturais que são referências preciosas da formação do Brasil como sociedade e como nação.

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