Masp na perspectiva do patrimônio

Lina Bo Bardi e cavalete de vidro

Lina Bo Bardi

Dezembro é o mês do Museu de Arte de São Paulo, o emblemático Masp. Considerado uma das principais instituições museológicas da América Latina, com obras que, além de abranger boa parte da produção brasileira, com nomes como Volpi e Portinari, tem exemplares de Van Gogh, Picasso, Matisse e Renoir. Esse rico acervo recebeu tombamento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 04 de dezembro de 1969, e seu prédio em concreto e vermelho, inaugurado em 1968 na Avenida Paulista, recebeu a proteção anos depois, em 2008, no dia 15 de fevereiro. 

O edifício, construído sobre um antigo belvedere, traz, desde sua concepção até sua construção, o espírito moderno, imprimido por sua projetista, a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi. Esta mulher faber sapiens sapiens, ou seja, que edificou estruturas concretas e conhecimento, deixou um legado que ainda paira sobre o Masp e na história da arquitetura brasileira. 

Uma das marcas deixada por ela é o famoso cavalete de vidro, que volta aos salões do Masp, hoje, dia 11 de dezembro, após 20 anos sem uso. A disposição sinuosa dos quadros, suspensos nestas estruturas (atualmente de cristal) e anexados a blocos de concreto não tem fins estéticos, feitos para ser algo bonito. O que diz muito sobre Lina Bo Bardi, para quem o uso social é a principal finalidade da arte e da produção cultural. 

Os museus novos devem abrir suas portas, deixar entrar o ar puro [...] A finalidade do Museu é formar uma atmosfera, uma conduta apta a criar no visitante a forma mental adaptada à compreensão da obra de arte, e nesse sentido não se faz distinção entre uma obra de arte antiga e moderna (Lina Bo Bardi). 

Exposição cavaletes de vidro, 2015

Exposição Acervo em Transformação, 2015.

Tombamento e cavaletes, uma história a contar
O tombamento do Masp, analisado pelo Conselheiro Marcos Azambuja, durante a 40ª Reunião do Conselho Consultivo do Iphan, em setembro de 2003, guarda uma singularidade. Azambuja relatou, em ata, que o processo nº 1.495-T-02 seria muito delicado e complexo, uma vez que foram apresentados dois pedidos distintos, ambos de 1999, um pelo Instituto Lina Bo e P.M.Bardi e outro pela presidência do Museu. 

A diferença entre as duas propostas envolveu, justamente, os cavaletes de vidro: o Instituto solicitava o tombamento do edifício e do sistema expositivo “em cavaletes de cristal e concreto, nos moldes do projeto original”. Já o texto proposto pela presidência mostra preocupação em limitar a autonomia do museu e possíveis modificações, caso fosse incluída na proteção a forma de expor pensada por Lina. 

Na ocasião, o próprio relator se mostra indeciso. “Levando em conta que, de alguns anos para cá, se desfez esse arranjo, o museu está cheio de partições e criou-se um pouco aquele labirinto habitual de museus que, me dizem os defensores da nova ordem, permite exposição de maior numero de obras, embora, creio, se perdeu muito do impacto visual e de luminosidade. Esse é o problema em que estamos confrontados. Portanto, é uma questão que escapa um pouco à nossa tradição.” 

Algumas pessoas criticavam, negativamente, a disposição dos cavaletes, com a leitura de que fosse impedir propostas museológicas contemporâneas, ao invés, de pensarem essa disposição talentosa das obras como mais um caminho de contato com o povo. Lina acreditava que todo o esforço arquitetônico e artístico devia ser voltado a democratizar a cultura por meio do contato com as pessoas e não apenas por decisões políticas. 

Durante a reunião do Conselho, o arquiteto Marcelo Ferraz, que trabalhou ao lado da arquiteta, trouxe a perspectiva dela e interviu em defesa da permanência dos cavaletes:
Como diz Aldo Van Eyck, transforma todos os quadros pintados durante quinhentos anos de história em uma grande família, criando novas possibilidades de observação, de percepção e de captação dessas obras [...] É um experimento que foi levado a cabo e merece, enquanto experimento, ser mantido. 

Ferraz esclareceu que somente a coleção principal foi concebida àquela maneira, fazendo cair o argumento de que dar continuidade a esse modo expositivo e incluí-lo no processo de tombamento seria um impedimento às novas reformulações internas. 

 
Exposição cavaletes de vidro, década de 1970

Cavaletes de vidro, década de 1970.

As divergências sobre novas ideias empreendidas para Masp existem, desde de sua criação. Um registro disso, é a carta enviada ao jornal Estado de São Paulo, em 05 de abril de 1970, na qual Lina Bo Bardi responde ataques feitos à concepção expositiva do Masp:
Quem inova paga, mas quem o faz pagar é geralmente quem se detém agarrado aos velhos costumes, às velhas tradições, aos velhos privilégios. Isto na arte, na política, e na vida [...] Museu é popular. Demonstrava-nos milhares de visitantes dos sábados e domingos, que olham um quadro com os mesmos olhos com que olham uma vitrina em liquidação, mas que, graças à vida e à alegria da Pinacoteca do Museu, conseguem tomar parte, mesmo sem 'bases culturais', em fatos de cultura. Como responsável pelo projeto do Museu foi minha intenção destruir a aura que sempre circunda um museu, apresentar a obra de arte como trabalho, como profecia de um trabalho ao alcance de todos.

O tombamento, finalmente, ocorreu em sessão ordinária do Conselho Consultivo, no dia 17 de dezembro de 2003. Como medida estratégica, optou-se por tombar o mobiliário e não só a maneira de expor. Dessa maneira, protegeu-se e preservaram-se os cavaletes e o edifício; ao mesmo tempo em que deu ao Museu a possibilidade de decidir quando usá-los. A apresentação das obras, proposta por Lina Bo Bardi, sobreviveu  como possibilidade, mesmo que sendo abandonado por duas décadas. 

Vanguarda revisitada 
No mês do aniversário de tombamento do edifício e do acervo, o Museu de Arte de São Paulo, inspirado nas ideias modernas de sua projetista, traz, novamente, à luz os cavaletes, na mostra Acervo em Transformação, composta por 119 obras, que compreendem uma período histórico entre o século 4 a.C até 2008. 

O texto de apresentação deixa claro que a proposta curatorial não é uma volta nostálgica ao passado, mas sim uma revisitação à proposta vanguardista de Lina Bo Bardi, que construiu um edifício museológico dotado de espírito transformador. Além disso, retoma a postura política da arquiteta que pensava a cultura como prática de vida do povo, eliminando “hierarquias, roteiros predeterminados e desafia narrativas canônicas da história da arte”, pontua o texto.

O pensamento aberto e libertário é concretizado na disposição e na transparência dessas plataformas expositivas, proporcionando acessos dos mais diversos. O curador, Tomás Toledo, ressalta como um dos pontos altos a proximidade que as estruturas de cristal proporcionam entre público e obra. “Outro ponto importante, que era uma intenção muito forte da Lina, é dessacralizar a obra de arte ao colocá-la num cavalete de vidro que a deixa suspensa no espaço, que a coloca em contato com o ambiente do seu entorno, em confronto e diálogo com as obras ao seu redor”, obseva Toledo.  

Nesse momento, o legado de Lina Bo Bardi encontra, novamente, sua experimentação e totalidade, com novos valores atribuídos, contribuindo à preservação do patrimônio cultural. Como ela mesma escreveu:

Desta maneira, as obras de arte antigas acabaram por se localizar em numa nova vida, ao lado das modernas, no sentido de vir e fazer parte na vida de hoje, o quanto possível. Acho meu projeto de painel-cavalete da pinacoteca MASP uma importante contribuição à museografia internacional. Os 3 mil visitantes do Museu, aos sábados e domingos, o demonstram, contra uma dezena de queixosos.

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