História e tradição: Patrimônio Cultural de Pelotas (RS) é reconhecido pelo Iphan
O sal e o açúcar, o material e o imaterial, o rural e o urbano. A interligação entre opostos é o fio que escreve as mais variadas histórias. Uma dessas histórias, responsável pela formação da identidade do povo brasileiro, é a da atual cidade de Pelotas (RS), que nasceu no século XVIII, a partir de um pequeno povoado e se desenvolvia em função da produção do charque: pedaços de carne salgada secos ao sol. Foi com a implantação das primeiras charqueadas que a economia regional prosperou, integrando o Rio Grande do Sul ao mercado nacional e dando à cidade de Pelotas o título de uma das mais importantes do interior do país durante o século XIX.
Foi também o charque que possibilitou a chegada ao Sul do país de uma riqueza nacional: o açúcar. Assim, além de ser considerada a cidade do charque, Pelotas recebeu também o título de capital nacional do doce, especialmente em função da produção doceira, oriunda do intercâmbio charque-açúcar. Os navios que levavam o charque para o Nordeste traziam de volta grandes quantidades de açúcar, transformados, no interior dos casarões pelotenses, em doces finos, confeccionados geralmente à base de ovos, conforme a melhor tradição portuguesa.
Este cenário – da cidade dos doces no Estado do churrasco – esteve na pauta do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, na última reunião, que foi realizada no dia 15 de maio, na sede do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em Brasília. Pela primeira vez, nesses 80 anos de dedicação à preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro, os conselheiros vão trabalhar, a um só tempo, os dois instrumentos de proteção: o tombamento e o registro. Ou seja, os aspectos arquitetônicos e artísticos que caracterizam o Conjunto Histórico de Pelotas estarão associados ao modo de fazer os doces das Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas (Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo, Turuçu).
Para a presidente do Iphan, Kátia Bogéa, essa reunião do Conselho Consultivo já é um reflexo dos debates realizados durante a celebração dos 80 anos do Instituto, em especial o Seminário Internacional O Futuro do Patrimônio, e marca uma nova etapa na gestão do Patrimônio Cultural Brasileiro. “A integração entre o material e o imaterial é imprescindível para se entender a dimensão das nossas tradições, das nossas memórias e da nossa identidade como nação brasileira, que é fruto de uma rica diversidade étnica, cultural e religiosa, que interage e se integra perfeitamente em nossas manifestações, em nosso Patrimônio Cultural. Um não existe sem o outro. Uma cidade, mesmo a mais linda e rica, é vazia sem suas tradições, sem a manifestação de seu povo. E é isso que vamos vivenciar nessa reunião do Conselho Consultivo, quando os conselheiros poderão conhecer como se consolidou o desenvolvimento da cidade de Pelotas, onde sal e doce, material e imaterial, andam lado a lado, juntos, valorizando sua cultura e garantindo seu desenvolvimento econômico”, conclui Kátia Bogéa.
O Conjunto Histórico de Pelotas
Quatro praças, um parque, a Chácara da Baronesa e a Charqueada São João integram o Conjunto Histórico de Pelotas e têm significativo valor histórico, artístico e paisagístico. É essa riqueza cultural que se deseja preservar. Dessa forma, caso aprovado pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, o Conjunto Histórico de Pelotas pode ser inscrito em três Livros do Tombo: Livro do Tombo Histórico, Livro do Tombo de Belas Artes e Livro do Tombo Arqueológico, etnográfico e paisagístico.
Uma característica particular do Conjunto Histórico de Pelotas é que, considerando o sistema municipal de patrimônio cultural estabelecido pelo Plano Diretor de Pelotas, será desnecessária a delimitação de poligonal de entorno, uma vez que o bem protegido pelo Iphan está totalmente inserido nas Zonas de Preservação do Patrimônio Cultural, que após análise verificou-se assegurar a preservação da vizinhança e ambiência da coisa tombada, nos termos do Decreto-Lei 25/1937.
As Tradições Doceiras
Pelotas encontra-se no epicentro de uma região doceira que abarca uma multiplicidade de saberes e identidades sob a forma de duas tradições: a de doces finos e a de doces coloniais. O doce desempenha um papel peculiar na composição da sociedade regional, sendo um elemento cultural que amarra a diversidade de grupos étnicos e sociais que a compõe.
Na sua maioria, essas doceiras e doceiros compreendem seu ofício como a continuidade das trajetórias de suas famílias, num templo ampliado. Essa relação está posta, sobretudo, no meio rural, entre os produtores de doces de frutas, que se encontram profundamente ligados à região colonial, como um espaço de vivências, trabalho e afetos. Assim, a possibilidade de registro das Tradições Doceiras de Pelotas e Antiga Pelotas, contemplando o espaço de ocorrência das duas tradições doceiras e os sentidos que a elas são atribuídos, por grupos detentores, se justifica tendo em vista seu valor identitário e a relação demonstrada entre o saber doceiro e o território referido.
Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural
O Conselho que avalia os processos de tombamento e registro é formado por especialistas de diversas áreas, como cultura, turismo, antropologia, arquitetura e urbanismo, sociologia, história e arqueologia. Ao todo, são 22 conselheiros, que representam o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), a Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), o Ministério da Educação, o Ministério do Turismo, o Instituto Brasileiro dos Museus (Ibram), o Ministério do Meio Ambiente, Ministérios das Cidades, e mais 13 representantes da sociedade civil, com especial conhecimento nos campos de atuação do Iphan.
Na ocasião da 88ª Reunião, a nova composição do Conselho Consultivo foi apresentada e o antropólogo Roque Laraia se despediu de suas atividades como conselheiro, após 13 anos de atuação como representante da sociedade civil e, posteriormente, da ABA. Ele foi relator de importantes processos de Registro, como o Ofício das Baianas de Acarajé e o da Cachoeira de Iauaretê – Lugar Sagrado dos Povos Indígenas dos Rios Uaupés e Papuri.
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