Termos-chave como conceitos

Luciano Teixeira

A definição de uma linha teórica para a elaboração de um dicionário é parte necessária e fundamental para que ele adquira a coerência e consistência que toda obra coletiva almeja ter. O Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural representa um esforço de sistematização e reflexão como resultado de décadas de pesquisas e trabalhos técnicos altamente especializados dentro de um campo disciplinar que o IPHAN ajudou a construir e consolidar. Nesse sentido, o Dicionário pretende pôr em perspectiva toda essa já longa tradição de produção de conhecimento, por meio de uma concentração em termos, expressões e conceitos recorrentes, que adquiriram relevância ao longo do tempo. A partir desse arsenal semântico “nativo” da Instituição, o projeto Dicionário IPHAN optou por demarcar alguns desses termos que poderiam concentrar um maior potencial de condensação semântica. Esses termos seriam os conceitos (ou termos-chave). Evidentemente, por mais discutidas que tenham sido essas escolhas e mais concisa seja a relação final dos conceitos a serem desenvolvidos e aprofundados, existe um percentual significativo de arbitrariedade que não podemos negar. 

A ideia tampouco é engessar o Dicionário em determinado enfoque teórico, mas abrir campos de estudo e estimular os pesquisadores da área a refletir teórica e historicamente sobre suas análises. Realizamos tão somente uma breve discussão das possibilidades teóricas oferecidas por essa corrente historiográfica, ainda pouco apropriada pelos estudiosos do patrimônio cultural. Contudo, para nos orientar no direcionamento de nossos esforços, resolvemos nos apoiar em algumas discussões teórico-metodológicas que servissem de eixo ao Dicionário. Após alguns debates, optamos por tomar como referência a proposta da História dos Conceitos, tal como desenvolvido na Alemanha pelos historiadores Reinhart Koselleck, Otto Brunner e Werner Conze. A Begriffsgeschichte ou História dos Conceitos (ou ainda história conceitual) é uma corrente historiográfica alemã que tem adquirido forte impacto internacional nos últimos anos. Seu resultado mais substancial é a obra Geschichtliche Grundbegriffe: Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland [Conceitos básicos de história (ou Dicionário de conceitos fundamentais)], publicada entre 1972 e 1997, em nove volumes. Um aprofundamento das categorias propostas pela História dos Conceitos poderia ser de grande valia para um amadurecimento das discussões encetadas nessa área. É o que a proposta deste Dicionário pretende incentivar e canalizar.

Talvez a maior contribuição da História dos Conceitos para o estudo da História – o que, em parte, justifica seu interesse para um dicionário como este, que não pertence especificamente ao campo da História, mas está estreitamente ligado a ela, como tentaremos demonstrar adiante – seja aquilo que Valdei Lopes Araújo (op. cit., p. 2) qualifica como “considerar a linguagem como um fenômeno irredutível às demais dimensões do real”. Correlato à chamada “virada linguística” que, a partir dos anos 1970, transformou o panorama das ciências humanas, o surgimento da História dos Conceitos marcou esse momento de amadurecimento da discussão historiográfica, na qual o papel da subjetividade ganhou maior destaque epistemológico e a linguagem deixou de ser vista como mera representação (espelho) da realidade.
Em suas interessantes reflexões, visando à implantação do projeto koselleckiano no Brasil, João Féres Júnior propõe uma distinção entre duas formas de apropriação desse projeto, as quais demarcariam posições opostas em relação ao presente: uma posição hermenêutica fraca e outra forte. A primeira tornaria a História dos Conceitos em um simples “método de se conduzir o estudo histórico de conceitos, e que, portanto, poderia ser aplicado a qualquer período histórico” (FÉRES, 2007, p. 110). Tal posição, corroborada em alguns escritos do próprio Koselleck e por alguns intérpretes de sua obra, teria uma finalidade meramente “pedagógica e desideologizadora do presente” (p. 112).

Ao contrário, a posição hermenêutica forte em relação ao presente estaria determinada pelo que o autor chama de antecipação teórica: “hipóteses e questões do presente projetadas sobre o passado” (p. 111). Em outras palavras, os problemas do presente condicionariam nosso olhar sobre o passado e o próprio projeto intelectual da História dos Conceitos obedeceria a esse impulso de responder a questões contemporâneas. De acordo com o historiador italiano Sandro Chignola, citado por João Féres Júnior, o projeto koselleckiano teria seu fundamento teórico (ou sua antecipação teórica) na busca da “gênese da consciência histórica ocidental moderna” (CHIGNOLA apud FÉRES, 2007, p. 112). O projeto intelectual da História dos Conceitos estaria, assim, indelevelmente associado ao advento da modernidade.
Sem pretendermos polemizar essa distinção, talvez possamos aproveitar a “finalidade pedagógica” da primeira posição – não por acaso apontada pelo autor como importante “para a produção de léxicos e dicionários de conceitos que seriam de grande utilidade para a pesquisa acadêmica em história e ciências humanas” (op. cit., p. 112) –, sem abrir mão do compromisso com o presente.

Na confecção deste Dicionário, levamos ambas as perspectivas em consideração. Não sendo nossa pretensão a realização de um léxico de conceitos político-sociais, nos moldes da obra coletiva organizada por Koselleck, Brunner e Conze, nem sequer de sua adaptação (ou tradução) ao contexto histórico brasileiro, utilizamos o Dicionário dos conceitos, como essa obra ficou conhecida no Brasil, principalmente como uma referência metodológica no trato com categorias e noções no âmbito das discussões do patrimônio cultural brasileiro. Mas, dentro dessa proposta, levamos em conta também nosso compromisso com a transformação das práticas de preservação existentes em nosso país, o que, em outras palavras, implica nosso compromisso com uma crítica do processo por meio da qual essas práticas culturais se configuraram no Brasil ao longo do século XX. Pensar as categorias do patrimônio e a própria categoria patrimônio como conceitos, na acepção ampla dada por Koselleck – “conceitos para cuja formulação seria necessário um certo nível de teorização e cujo entendimento é também reflexivo” (KOSELLECK, 1992, p. 135) –, abre-nos a possibilidade de uma escrita dessa história a contrapelo, na acepção benjaminiana.

Isso nos leva diretamente às principais objeções que podem ser feitas em relação ao dicionário que estamos construindo: baseado em quais critérios podemos afirmar que os termos-chave aqui apresentados são de fato conceitos, na acepção acima, e por que escolhemos esses conceitos e não outros? O texto anterior já procurou demonstrar a lógica que presidiu essa escolha. Porém, além dos argumentos já apresentados, podemos arriscar uma justificativa que procura estabelecer as relações desses termos-chave entre si, ao mesmo tempo em que explica a exclusão de outros, igualmente relevantes. Por razões diversas, que não cabem ser discutidas aqui, na história da preservação do patrimônio no Brasil, o Estado assumiu um papel fundamental na articulação de ações e políticas de preservação. Por esse motivo, os instrumentos de proteção legal, associados aos procedimentos burocrático-jurídicos estatais, adquiriram particular relevância, consubstanciada na enorme quantidade de termos e expressões advindas dessa esfera para a discussão do patrimônio. Muitas vezes, essa sobrecarga do jargão jurídico e técnico-administrativo imposta às discussões dessa área – e que obedeceu a uma lógica de profissionalização e rotinização dessas práticas no interior do Estado brasileiro (CHUVA, 2009) – terminou por obscurecer diversos problemas e características estruturais do processo histórico de constituição da preservação em nosso país. Contudo, no esforço de repensar esse processo, é inevitável que se parta dessas categorias tornadas nativas e, por esse motivo, naturalizadas, assim como da sua lógica interna de articulação, para que se desdobrem sentidos e possibilidades teóricas em termos que, com o tempo, tornaram-se usais e opacos.

Esse mesmo princípio informa os critérios de exclusão adotados no Dicionário: poder-se-ia pensar em todo um léxico centrado em conceitos caros às ciências humanas e fundamentais para se entender o patrimônio: memória, identidade, nação são conceitos facilmente justificáveis e passíveis de serem abordados num dicionário dessa natureza, mas fugiriam à lógica acima descrita e ao lugar de escrita desta obra – o Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 
Todas essas considerações, todavia, ainda não respondem exatamente à caracterização dos conceitos proposta por Koselleck: terem certo nível de teorização e serem reflexivos. Com certeza, não podemos pensar em palavras tais quais tombamento e registro como atendendo a essas exigências. Nesse sentido, nossa proposta de um léxico histórico de termos fundamentais do patrimônio brasileiro se diferencia daquela idealizada por Koselleck. Assumimos como relevantes e dotados de densidade conceitual termos restritos a um campo específico do conhecimento, independentemente de uma relevância social e política maior.

Demarcada essa diferença, enfatizaremos agora alguns procedimentos metodológicos que dialogam com a História dos Conceitos e têm nos servido de referência para a elaboração deste Dicionário. Tomemos por base alguns pontos indicados por Koselleck como importantes para a construção de uma História dos Conceitos: em sua conferência de 1992, realizada na Fundação Getúlio Vargas, intitulada “Uma História dos Conceitos: problemas teóricos e práticos”, o autor lista seis desses pontos: o primeiro, a discussão sobre o que é um conceito e a distinção entre conceito e palavra; o segundo, a utilização/emprego dos conceitos, que remete à discussão sobre as relações entre História e Linguagem; o terceiro trata dos critérios seletivos dos conceitos e as complexas relações texto/contexto; o quarto se sustenta na afirmativa de que “todo conceito só pode enquanto tal ser pensado e falado/expressado uma única vez” (KOSELLECK, 1992, p. 138) – ou seja, cada conceito tem seu momento único de formulação, atrelado que está a um contexto específico que permitiu sua elaboração. É importante aqui indicar uma ressalva feita pelo próprio autor: embora o momento de enunciação de um conceito seja único, ele encerra todo um conjunto de significados e forças históricas anteriores e, por sua vez, a partir do instante em que é expresso, moldará as interpretações e ações políticas que vierem depois, o que o leva a afirmar que “a diacronia está contida na sincronia” (KOSELLECK, 1992, p. 141), pois não seria possível uma história de conceitos únicos e irrepetíveis se não houvesse alguma força diacrônica oculta no momento da formulação de cada conceito. O quinto ponto desdobra o anterior: essa força diacrônica deve ser mensurada empiricamente, o que exige uma separação dos tipos de fontes textuais que podem expressar as diferentes temporalidades contidas em um mesmo conceito. Por fim, o sexto ponto: a importância de se distinguir analiticamente a apreensão linguística da realidade e a realidade mesma dos fatos.

Cada um desses pontos remete a um conjunto específico de questões postas à História dos Conceitos e que o autor apresenta, ora em linhas gerais, ora se detendo em exemplos extraídos de sua própria prática historiográfica. Na confecção de nosso Dicionário, enfrentamos problemas similares, que podemos reunir em três conjuntos: a definição/seleção dos conceitos – o que tentamos enfrentar mais acima –; o papel/uso desses conceitos nas práticas de preservação; e, por último, a questão das temporalidades contidas nos conceitos (a diacronia contida na sincronia, expressão tão cara a Koselleck).

Tratando da questão uso/emprego dos conceitos, Koselleck salienta que todo conceito é, ao mesmo tempo, fato e indicador: ele expressa determinados conteúdos, enquanto indica algo situado para além da língua. Para se compreender melhor essa dupla qualidade dos conceitos, basta pensarmos na proposição koselleckiana da relação necessariamente tensa entre História e Linguagem. Mais do que a mera admissão de uma realidade extralinguística, ela aponta para a indissociabilidade da relação entre a língua e o extralinguístico na construção da história. Da mesma maneira, os termos-chave deste Dicionário devem ser pensados como índices de uma realidade histórica a qual ainda tateamos. Nessa direção, pensamos este Dicionário, de caráter eminentemente colaborativo, como indutor de pesquisas e estudos que estiquem os limites da elaboração conceitual, ao mesmo tempo testando a validade/aplicabilidade de seus usos.

Quanto à questão das diversas temporalidades presentes nos conceitos, trata-se de um dos temas mais ricos para a elaboração de qualquer dicionário. Ela pressupõe a discussão de dois aspectos para os quais a História dos Conceitos tem oferecido reflexões muito ricas: a questão do estatuto das fontes e da originalidade de um olhar sobre o passado, construído a partir de uma abordagem historiográfica assente em conceitos.

Analisando a contribuição dessa corrente historiográfica para uma nova apreensão da realidade histórica, Valdei Araújo destaca a articulação entre os dois aspectos que frisamos acima: “Como testemunho histórico efetivo de mundos não mais inteiramente disponíveis, os textos podem nos oferecer um acesso privilegiado às formas pela qual determinada sociedade experimentou, concebeu e prefigurou a realidade” (op. cit., p. 49).

Alertando que “os conceitos históricos são fenômenos reais que atuam em qualquer sociedade humana, instrumentos cognitivos produzidos na existência concreta” (ibid), o autor salienta a importância desses conceitos na compreensão da maneira pela qual cada sociedade enxerga e “prefigura” sua própria realidade. Embora seu texto se refira aos conceitos políticos e sociais mirados pela História dos Conceitos, podemos extrapolar sua observação para o campo do patrimônio cultural e nos perguntarmos sobre as formas pelas quais nossa sociedade tem experimentado, concebido e prefigurado essa realidade específica do patrimônio cultural brasileiro. Grande parte do sucesso deste Dicionário aposta nas investigações a respeito dessas formas ao longo do tempo.

Um dos aspectos essenciais no trabalho com os conceitos é compreender sua estrutura profunda, percebendo as transformações e permanências semânticas neles ocultas. Definindo que “os conceitos [...] são vocábulos nos quais se concentra uma multiplicidade de significados” (KOSELLECK, 2006, p. 109), Koselleck desenvolve em um texto fundamental – “História dos Conceitos e História Social” – a explicitação de seu arcabouço teórico-metodológico: “no âmbito de uma possível história dos conceitos, a indagação fundamental a respeito dos processos de alteração, transformação e inovação conduz a uma estrutura profunda de significados que se mantêm, recobrem-se, precipitam-se mutuamente...” (p. 107).

É no entendimento desse entrecruzar de significados que o estudo dos conceitos ganha seu maior rendimento epistemológico: levantar as muitas nuances semânticas de cada termo, percebendo suas sutis transformações ao longo do tempo, identificar rupturas de sentido de um mesmo vocábulo, mas, simultaneamente, registrar quando novos termos assumem importância, por vezes substituindo o vocábulo anterior, mesmo que o conteúdo original sofra pouca alteração, ou, ao contrário, entender o contexto que levou ao surgimento de novos termos, compreendendo o que eles expressam de original e quanto dos significados anteriores eles incorporam. Ainda, notar a concomitância de termos e expressões que concorrem para explicar determinados aspectos da realidade. Pensemos, por exemplo, quanto a essa última possibilidade, em bem e coisa, vocábulos do jargão jurídico, aplicados ao entendimento do patrimônio. São coincidentes? Não? Quando foram, se foram? O que cada um implica, não apenas na atualidade, mas no decurso do tempo? São concorrentes? Opõem-se? Complementam-se? Essas são apenas algumas das indagações que se podem fazer nesse contexto e que somente investigações minuciosas e atentas podem responder. Tratamos dessas variadas possibilidades sem a pretensão de esgotá-las, porém, apenas para ilustrar o enorme potencial heurístico dessa abordagem ao repensarmos as práticas de preservação do patrimônio no país. 

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Valdei Lopes de. História dos conceitos: problemas e desafios para uma releitura da modernidade ibérica. Almanack brasiliense, n. 7, p. 47-55, maio 2008.
CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009.
JASMIN, Marcelo Gantus; FÉRES JÚNIOR, João (Orgs.). História dos conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; Edições Loyola; Iuperj, 2006. 
FÉRES JÚNIOR, João. Para uma história conceitual crítica do Brasil: recebendo a Begriffsgeschichte. In: JASMIN, Marcelo Gantus; FÉRES JÚNIOR, João (Orgs.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; Edições Loyola, 2007. p. 109-119.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006.

Como citar: TEIXEIRA, Luciano. Termos-chave como conceitos. In: RESENDE, Maria Beatriz; GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia. Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2014. 

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